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Carla Estefani, 21, faz pose para um retrato em 24 de março de 2020 no Rio de Janeiro, Brasil. Ela trabalha fazendo entregas para um aplicativo há dois meses. Bruna Prado / Getty.

Deveríamos transformar os aplicativos de entrega em um serviço público de alimentação

Na segunda-feira, Rebecca Long-Bailey, que disputa a liderança do Partido Trabalhista britânico, fez um chamado para que o governo de seu país organizasse um serviço nacional de alimentação como uma forma de lidar com a falta de comida durante a crise do COVID-19. Em meio às compras motivadas pelo pânico generalizado e uma desaceleração total da economia, muitos cidadãos demonstram ansiedade com a possibilidade de interrupção de fornecimento de suprimentos – ou mesmo pelas consequências de deixar suas casas.

Na Dinamarca, a primeira-ministra social democrata Mette Frederiksen deu sua contribuição ao debate sugerindo que seria melhor que a população pedisse entrega de comida em vez de ir aos supermercados. O governo dinamarquês reagiu rápido e de maneira admirável em relação ao COVID-19 – e, como alguém que trabalha com entregas pela plataforma Wolt em Copenhague, fiquei boquiaberto com seus comentários.  

Para que a entrega em massa de alimentos seja viável, contudo, é necessária uma resposta mais coordenada – como a criação de um serviço nacional de alimentação, parte de um novo ramo da assistência social. Como sugere Callum Cant ao escrever sobre o Deliveroo, nós já temos parte da base para isso, com a tecnologia por trás das plataformas de entrega de comida. Antes de mais nada, porém, essa tecnologia tem que se tornar pública – e tem que passar a funcionar para o bem coletivo, não para lucro privado.  

Trabalhando para Wolt

Eu trabalho como um “entregador parceiro” da Wolt em Copenhague. Como uma espécie de Grubhub [ou iFood e similares] com características dinamarquesas, o sistema de algoritmo do Wolt permite que os parceiros trabalhem de maneira altamente precisa, uma eficácia inédita até o desenvolvimento dessa tecnologia. Wolt usa big data para calibrar e recalibrar suas máquinas de algoritmo de modo a disponibilizar sempre as informações mais atualizadas e, assim, possibilitar que todas as interações sejam aceleradas – da coleta da comida pelo entregador no restaurante à entrega para o cliente. 

Em um período de apenas poucos anos, Wolt revolucionou a entrega de comida na maior parte das cidades da Dinarmarca ao garantir serviço rápido e preço inferior ao de outros serviços de entrega. No entanto, apesar da Wolt ser mais barata que outros serviços, ainda sai muito mais caro encomendar uma entrega do que cozinhar uma refeição em casa. Muitas das pessoas em risco – como quem tem mais idade, portadores de necessidades especiais e pessoas de baixa renda – não seriam capazes de pagar por entregas regularmente.

Como o principal serviço de entrega de comidas em muitas cidades dinamarquesas, a Wolt é quem mais se beneficia de comentários da primeira-ministra – e provavelmente verá um aumento nos lucros. Ainda assim, o lucro é justamente um dos motivos que faz com que uma empresa privada não seja a mais adequada para providenciar um serviço público durante o período de crise. Dado o status quase-monopólico em algumas cidades, a companhia pode até usar a situação para elevar o custo das entregas ainda mais.  

Outro problema envolve o status de seus trabalhadores. Como as empresas de entrega de alimentos de outros países, a Wolt considera seus “parceiros” como empreendedores independentes mais do que como empregados, o que significa que eles não têm direitos trabalhistas como auxílio-doença. A Wolt ofereceu alguma assistência para os entregadores, algo como US$ 7,00 [cerca de R$ 37,00] de desconto para desinfetante para álcool gel, e uma espécie de pagamento para auxílio-doença em casos comprovados de contaminação por COVID-19 – isso apesar de, atualmente, a Dinamarca só testar quem tiver sintomas graves. Em outras palavras, esses trabalhadores precarizados não recebem as mesmas garantias que empregados comuns recebem. Tais medidas, portanto, parecem insuficientes para garantir que eles deixem de se arriscar nas ruas para garantir a subsistência – mesmo que eles tenham os sintomas. 

Ajuda mútua

Em seu livro sobre a plataforma de entregas de comida Deliveroo, Callum Cant sugere que a expropriação da plataforma pelos trabalhadores poderia garantir uma alternativa ao modelo de negócios no qual essas plataformas operam atualmente. Cant escreve que “uma plataforma gerenciada por trabalhadores de entrega de ‘refeições sobre rodas’ pode inicialmente garantir as necessidades de uma população em envelhecimento e expandir o suporte para casos adicionais de necessidades temporárias ou permanentes”. Uma ideia como essa poderia ser adotada pela Dinamarca, tornando a Wolt uma empresa pública, de maneira a garantir que a mesma aja como uma quarta força de emergência: o Serviço Nacional de Alimentação. 

Em vez de temer o custo de usar um serviço como Wolt, quem tem imunidade baixa poderia ter a comida entregue na porta, contando com subsídio do Estado. Essas pessoas podem ser identificadas por suas ligações com serviços sociais, por meio de redes comunitárias de apoio mútuo que estão sendo estabelecidas, e por organizações de caridade como a Cruz Vermelha. O desenvolvimento dessas redes informais pode ser útil para que a tecnologia de algoritmo continue a ser melhorada, beneficiando tanto trabalhadores quanto consumidores.  

Na mesma medida, parceiros da Wolt poderiam ter novos contratos e se sindicalizarem por meio da 3F, que tem organizado os mesmos, o que significaria que, se eles começassem a desenvolver sintomas da COVID-19, poderiam ter a garantia de ficar em casa para proteção deles mesmos e de outros. Se a nacionalização acontecesse, a tecnologia desenvolvida pela Wolt poderia garantir um modelo de assistência social bastante avançado. 

Conforme o mundo continua a ser afetado pelo coronavírus, a direita está em marcha, aumentando a retórica contra migrantes, responsabilizando trabalhadores de baixa renda por continuarem a usar transporte público, e relegando as mortes para aqueles que são “imunocomprometidos”. A esquerda precisa ser criativa na resposta e uma ideia como um serviço nacional de alimentação que vá de encontro às necessidades de muitos poderia ganhar popularidade e ser uma importante parte de nossa perspectiva em um mundo pós-COVID-19. 

Não podemos nos dar ao luxo de esperar que isso nos seja dado – já é algo significativo que possamos espalhar as sementes por enquanto, ao contatar nossos vizinhos, ao promover grupos de ajuda mútua e ao apoiar trabalhadores de aplicativos de entrega nas suas iniciativas de sindicalização. Acima de tudo, nós precisamos de um plano de resposta a essa crise fundamental do capitalismo – e reestruturar nossa relação com a alimentação é parte vital nisso. 

Cierre

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Published in Análise, Capital, Cidades, Europa and Política

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