Presente na internet desde 2017, a figura do QAnon cresceu em popularidade exponencial nos EUA durante a pandemia, ao transpor a fronteira entre os fóruns onde surgiu (4 e 8Chan) e plataformas do mainstream como Reddit, Facebook e YouTube, e, mais recentemente, outras mais improváveis como Tik Tok e LinkedIn. Na medida em que as eleições presidenciais se intensificaram, o movimento tem transbordado para o mundo off-line, em manifestações contra o tráfico de crianças articulados pela hashtag #SaveTheChildren e, de forma mais preocupante, em manifestações mais violentas que tomaram às ruas.
A crescente atenção da mídia e o banimento de páginas e perfis ligados ao movimento no Reddit, Twitter, Facebook e outras plataformas têm ajudado a retroalimentá-lo: assim como nos populismos da direita radical, em sistemas conspiratórios a oposição da sociedade dos “normais” só confirma e reforça as alegações da teoria.
Como mostrou um levantamento da Agência Aos Fatos, conteúdos e perfis relativos ao movimento já começam a circular no Brasil, inclusive passando por políticos e outras figuras ligadas a Jair Bolsonaro. Trata-se de um movimento conspiratório que possui afinidades fortes junto à direita radical nos EUA e demais países em que chegou, pela semelhança não apenas de conteúdo (os inimigos são, em larga medida, os mesmos) mas de estrutura e modus operandi. Tendo explorado algumas das bases infraestruturais da eficácia do bolsonarismo em 2018, me parece possível fazer o mesmo com o movimento do QAnon.
Algoritmos e narrativas conspiratórias
Estas e outras narrativas conspiracionistas contemporâneas podem ser lidas como uma reação, numa gramática que nos parece aberrante e irracional, ao que Mark Fisher chamou de realismo capitalista.
O que é chamado de QAnon não é uma teoria da conspiração única e coerente, mas um “combo” de narrativas conspiratórias reproduzida por um corpo crescente de seguidores, num processo de crowdsourcing altamente gamificado. O seu modo de produção de verdades opera não por procedimentos de contestação, corroboração e refinamento do conhecimento como na ciência, mas por extensão e adição de novos fragmentos por parte dos seguidores. Essa lógica replicativa, que Douglas Rushkoff chamou de fractalnoia, é própria da internet contemporânea: uma forma das pessoas “conectarem os pontos” causais por conta própria num ambiente de caos informacional. O argumento de Rushkoff coaduna com outra forma como o QAnon tem crescido digitalmente: pelo impulsionamento dos algoritmos homofílicos que organizam as recomendações de grupos no Facebook ou vídeos no YouTube. Programados para conectarem “igual com igual”, esses sistemas acabariam atraindo para o ecossistema do QAnon usuários com interesses adjacentes como movimentos anti-vacina, anti-lockdown e pró-Trump.
Nem todos se unem ao movimento pelos mesmos motivos: uma mesma estrutura caleidoscópica permite contemplar a heterogeneidade de usuários ao mesmo tempo mantendo-os unidos em torno de significantes vazios comuns, sendo o principal deles o próprio “Q”. Como no populismo digital de Bolsonaro, Trump e outros, forma-se também aqui uma sobreposição eficaz entre marketing de massa baseado na “marca” QAnon e o marketing microssegmentado típico da Web 2.0. Novos seguidores vão se unindo ao movimento ao se apropriarem de fatias específicas do amplo espectro de conteúdo conspiracionista replicado online pelo movimento. O repertório varia desde a justa indignação com o tráfico e abuso de crianças até conspirações de nicho de base anti-semita como rituais de consumo de sangue sacrifical humano, passando por narrativas anti-globalistas como a do deep state (Estado profundo) e os suspeitos de sempre: George Soros, os Clintons, Bill Gates, Hollywood, etc.. Parece ser possível pertencer ao movimento se comprometendo com algumas dessas narrativas e não outras – em outras palavras, aquilo que, olhando de fora, parece um grande “balaio de gato”, é cognitivamente unificado do ponto de vista de cada sujeito.
Purificação da realidade
Também como na direita radical, trata-se de um movimento de franja que transbordou para o mainstream da internet, e depois para as ruas, defendendo uma posição anti-establishment para além da esquerda e direita por meio de palavras de ordem das quais ninguém, em tese, discordaria: lutar contra a corrupção ou salvar as crianças. O vazio de conteúdo desses slogans esconde a intenção de um profundo efeito performativo: virar a realidade do avesso para repurificá-la, eliminando do corpo político e social uma parcela da sociedade a que se nega o estatuto de humanidade – as elites comunistas, os monstros pedófilos ou, como foi no caso extremo da Alemanha no entre-guerras, os judeus.
É impossível explicar um fenômeno como este por um único fator ou causa – a própria suposição de efeitos causais lineares é aquilo que está em jogo na reviravolta epistêmica avançada pelos populismos da direita radical, o pensamento conspiratório e outras interações do realismo capitalista. Mais promissoras, a meu ver, são abordagens sistêmicas ou dialéticas que contemplem causalidades não-lineares, recursivas e coemergentes, elas mesmas afins à dinâmica cibernética das arquiteturas digitais. Há uma perspectiva possível nesta direção, a partir de leituras antropológicas do materialismo histórico-dialético.
A partir dos anos 1980, antropólogos baseados nos EUA avançaram releituras de base etnográfica para o mecanismo do fetichismo da mercadoria descrito por Marx em O Capital, visando iluminar sobretudo apropriações pós-coloniais da lógica capitalista por populações incluídas de forma marginal no sistema-mundo. Em O Diabo e o Fetichismo da Mercadoria na América do Sul, o australiano Michael Taussig interpretou pactos com o diabo feitos por trabalhadores da cana na Colômbia, e cultos sincréticos ao tío por mineiros na Bolívia, como críticas espontâneas à alienação envolvida no modo de produção capitalista. É como se, por vias próprias e baseados na sua condição histórica objetiva, esses trabalhadores tivessem chegado a uma análise paralela à que Marx fez do fetichismo da mercadoria.
Vinte anos depois, o casal de antropólogos sul-africanos Jean e John Comaroff transpuseram e estenderam o espírito dessa análise para o capitalismo neoliberal, destacando o seu caráter milenarista por meio de uma analogia com o retorno do Cristo. A “segunda vinda” do capitalismo na virada do milênio, após a exaustão do compromisso keynesiano-fordista, desestrutura as promessas da modernização industrial em prol dos elementos imateriais e especulativos do capital. Não se trata de mera metáfora: o capitalismo neoliberal precisa efetivamente liberar forças especulativas e, na sua esteira, formas epistêmicas “não-modernas” baseadas em temporalidades messiânicas e causalidades ocultas. Essas formas seriam, por assim dizer, a “superestrutura” adequada ao capitalismo neoliberal contemporâneo.
Assim, no capitalismo milenarista, a flecha da modernização é substituída por temporalidades apocalípticas (religiosas mas também seculares, como o Antropoceno); a previsibilidade científica baseada em evidências dá lugar, como nos mercados financeirizados, a antevisões oraculares e profecias auto-cumpridas; formas variadas de cassino capitalism, jogos de azar, esquemas-pirâmide e outras promessas de ficar rico rápido e sem trabalhar substituem o modelo de mobilidade social fordista baseado na educação e no pleno emprego; punitivismo e linchamentos públicos, morais e físicos, deslocam a institucionalidade garantista do direito liberal; charlatanismos e fraudes, cultos e seitas, pânicos morais em torno de múltiplas formas de corrupção e criminalidade, rumores de vampirismo, canibalismo e zumbificação proliferam em sociedades cada vez mais fragmentadas.
A entropia neoliberal da crise permanente
O colapso da diferença entre fato e ficção, público e privado, o pessoal e o político, indivíduo e rede, conhecimento científico e saberes leigos tão celebrado pela esquerda acadêmica e militante na transição para o período neoliberal não parece hoje tão promissor assim. É impossível controlar e delimitar o alcance da entropia neoliberal: ela atinge também a separação entre religião e laicidade, espontaneidade e manipulação, vida e trabalho, permitindo com que a racionalidade neoliberal e seus efeitos espectrais contaminem as demais esferas sociais. Desnecessário dizer que, desde que Jean e John Comaroff escreveram, essas tendências só se intensificaram com a digitalização crescente da vida, proliferando em novas formas nos mundos virtuais das bitcoins, influencers e micro-celebridades, balcanização política, cancelamentos, fraudes digitais, viralizações, conspiracionismos e ecossistemas ocultos povoados por vídeos e imagens de pessoas sendo torturadas e violadas, dentro e fora da dark web – inclusive a “de bolso”: os aplicativos de mensagens criptografados como o WhatsApp.
A sugestão dos Comaroff é que esses padrões reverberam estruturas emergentes da própria economia neoliberal, onde a vida gira numa temporalidade de crise permanente, incerteza generalizada, ambiguidade epistêmica e, nos termos de Fisher, cancelamento do futuro. O empreendedorismo é uma promessa que opera com base no risco e na imprevisibilidade; a verdade dos mercados não é a verdade controlada e rigorosa da ciência, mas uma verdade performativa que expele, a posteriori, qualquer realidade “que venda”. Como mostra bem o filme Parasita, não obstante a ideologia da meritocracia, sucesso ou fama passam por critérios e lógicas que parecem cada vez mais ambíguos e aleatórios: networking, reciprocidade, sabotagens, estética e aparência, performance, sorte – ou, quem sabe, seu signo?
Na medida em que se torna mais especulativo e imaterial, o capital se descola das realidades concretas da produção e da vida objetiva e atravessa o globo movido pelo risco, produzindo na sua esteira efeitos caóticos: subvertendo expectativas de soberania e controle sobre o próprio destino de indivíduos e governos locais; fazendo e desfazendo fortunas por meio do que aparecem como causalidades aleatórias ou mágicas; a precariedade se generaliza, e o que era exceção – a crise – vira a regra do nosso quotidiano. O sistema dá sinais de involução: ao invés de produzir novos futuros a que possamos almejar, temos que fazer cada vez mais apenas para conseguirmos ficar no mesmo lugar.
Movimentos conspiratórios como o QAnon e as inversões radicais performadas pelos populistas da direita radical respondem diretamente a esse estado das coisas: ao proporem um rearranjo da economia de visibilidade no neoliberalismo, oferecem clareza e compreensão onde antes só havia opacidade e confusão; esperança, futuro e protagonismo onde antes só havia desalento, ceticismo e impotência. Desnecessário dizer, esses rearranjos têm passado sobretudo por meios digitais, e se valido de propriedades infraestruturais já presentes na Web 2.0. A red pill é a metáfora por excelência dessa inversão: o que era realidade torna-se engano, e vice-versa; ou, na versão bíblica, “não há nada oculto que não seja revelado”. Não surpreende que se encontre nesses casos dinâmicas muito parecidas com as de cultos e seitas.
Identificação comum
Ao que tudo indica, portanto, as inquietações e revolta latentes contra o realismo capitalista têm encontrado forma não nas narrativas da esquerda – presas aos padrões do século XX, ou às armadilhas da inclusão neoliberal – mas em movimentos outros que estão conseguindo acessar os interesses, lógicas epistêmicas e desejos mais urgentes das pessoas. Os Comaroff nos lembram que, mesmo no período fordista, classe nunca funcionou de modo plenamente efetivo como categoria de reconhecimento para conectar infraestrutura e experiência quotidiana, sendo facilmente deslocada por outras formas de identificação como nacionalidade, etnicidade, religião, raça, gênero ou geração. Isso não significa, todavia, que trabalhadores “sem consciência de classe” sejam vítimas passivas do capital. A antropologia, a história social e outras disciplinas mostram que sua perspectiva crítica nem sempre é canalizada pelos meios convencionais do marxismo e outras abordagens intelectualizadas. E quando visto no detalhe, o movimento do QAnon mostra-se especialmente ilustrativo da convergência de várias tendências do capitalismo milenarista (ou realismo capitalista) descritas pelos Comaroff, Fisher e outros.
Um dos principais segmentos do sistema QAnon, a teoria do deep state, pode por exemplo ser lido como uma crítica da pós-política que caracterizou o período neoliberal até a recente ascensão da direita radical. Cultivado pela ideia de que existe um mundo oculto de burocratas e elites poderosas dando as cartas por trás dos panos encontra eco em eventos reais como os vazamentos do Wikileaks e dos e-mails de John Podesta durante a campanha de 2016 nos EUA. Também a ascensão populista deriva de uma percepção de que elites liberais cosmopolitas estão demasiado afastadas da dura realidade das pessoas comuns, e precisam ser substituídas por líderes capazes de refazer do zero o pacto entre Estado e povo que funda a soberania popular. Movimentos como o QAnon oferecem uma forma cognitivamente simples ,tecnicamente acessível, afetivamente satisfatória e mesmo divertida das pessoas se sentirem capazes de conhecer e influir novamente no destino das suas sociedades e até da humanidade.
A volta cinematográfica do Messias
Já outros segmentos do sistema Q dão vazão a uma problemática que é quase tabu dentro da esquerda: o refluxo do processo de secularização. Os Comaroff nos alertam que a linguagem capitalismo milenarista não é o idioma frio da modernização, mas a palavra encantada das causalidades ocultas e temporalidades messiânicas. A afinidade do QAnon com certos segmentos evangélicos se demonstra evidente: Trump, a Tempestade e o Grande Despertar ecoam diretamente o retorno de Cristo e o Arrebatamento, em narrativas escatológicas legitimadas por versículos escolhidos a dedo: “Vai ser bíblico!”, dizem eles.
Mais interessante – e talvez preocupante – tem sido um caminho central para o crescimento do movimento que é menos associada à direta política: comunidades new age e outras espiritualidades alternativas contemporâneas, influencers de bem-estar e saúde natural, grupos de mães e afins. Já foi criado até um neologismo para essa intersecção: conspiritualidade. E de fato, focando no detalhe, percebem-se múltiplas sobreposições, como a desconfiança da indústria farmacêutica, da grande mídia e o imperativo de fazer a própria pesquisa – #DoYourOwnResearch consolida o sentido contemporâneo de “pesquisa” como busca na internet, onde estão disponíveis quaisquer repertórios que se pretenda encontrar. De um ponto de vista estrutural, a linguagem das energias e a expectativa de uma purificação na Era de Aquário e afins não são distantes da linguagem evangélica da ação invisível do Espírito Santo e o Arrebatamento que virá.
Esses segmentos mais explicitamente religiosos ou espirituais se combinam com os laicos em um tipo de religião hiper-real que avança pela dissolução de fronteiras entre a realidade e narrativas de produtos da indústria cultural – outro traço marcante do realismo capitalista. Alice no País das Maravilhas, Titanic, O Poderoso Chefão e outros já foram citados pelo próprio Q. Boa parte da linguagem do movimento também foi tomada de empréstimo de Hollywood: a pílula vermelha de Matrix, o adrenocromo de Medo e Delírio em Las Vegas e Laranja Mecânica, e mesmo o seu principal slogan, Where We Go One We Go All (WWG1WGA), foi retirado de um filme de Ridley Scott, White Squall.
Pânico atemporal
Cabe notar como o movimento cresceu a partir da proliferação de pânicos morais que, historicamente, se associam a períodos de crise, mudança rápida e consequente insegurança sobre a integridade da ordem social – o que, como mostra a antropologia, costuma se refletir em preocupações com a integridade das fronteiras corporais. Em versões extremas do QAnon, este eixo se desdobra em versões renovadas do “pânico satânico” que vicejou nos EUA nos anos 1980 em torno do assassinato ritual de crianças – ícone da pureza e autenticidade nas nossas sociedades. As elites que violam, torturam e bebem o sangue de bebês para se manterem jovens e saudáveis seriam a representação máxima da desumanidade – o mal absoluto. A temporalidade de crise permanente do capitalismo neoliberal é terreno fértil para a perenização de pânicos morais, e o cancelamento do futuro, para soluções messiânicas como as que vemos nos populismos da direita radical, espiritualidades emergentes e em sistemas conspiratórios como os do QAnon.
Embora alguns seguidores de Q envolvidos em eventos off-line demonstrassem sinais de sofrimento mental, e muitos pareçam ter perfil depressivo e solitário, é mais provável que esse tipo de fenômeno possa ser melhor entendido como um transtorno social. Fisher via a epidemia de distúrbios psicológicos, desesperança generalizada, re-burocratização da vida e outros sintomas do nosso tempo como efeitos da capilarização do neoliberalismo na vida quotidiana e na própria cognição das pessoas. Ele considerava a politização desses efeitos como alternativa para uma esquerda renovada que conseguisse novamente conversar com as realidades, anseios e preocupações das pessoas. Contudo, o que estamos vendo até o momento parece ser menos a sua politização que a sua “conspiracionalização”.
Quarenta anos de realismo capitalista depois, é preciso lembrar que não foram apresentadas para boa parte da população nos EUA, Brasil e alhures, gramáticas eficazes de politização e superação de contradições estruturais fora dos limites do neoliberalismo. Indústria do entretenimento, religiões carismáticas, punitivismo, espiritualidades alternativas e outras formas de reencantamento do mundo – é pelos repertórios disponíveis, cada vez mais por vias digitais, que as pessoas vêm fazendo a sua crítica espontânea ao sistema. Precisamos aprender a ouvi-las por detrás do ruído, muitas vezes criado por nós mesmos.
[…] que la tierra es plana, dudando del calentamiento global y oponiéndose a la vacunación en masa. Un texto publicado por Jacobin Brasil sobre QAnon explica que todas estas teorías de la conspiración, pánicos morales y slogans vacíos que se […]
[…] Letícia CesarinArtículo originalmente publicado en portugués en Jacobin Mag Brasil, noviembre de […]