Debaixo dos laboratórios e dos escritórios do prédio de materiais da Michigan Tech, em um enorme porão, um jovem físico chamado Josh Pearce está fazendo um filtro de água ao custo de cinco centavos de dólar. Ou melhor, o filtro está sendo feito para ele por uma impressora 3D zunindo de um lado para o outro através de uma mesa aquecida, com um notebook dizendo ao bico em que direção se mover.
O time de pesquisa de Pearce está reunido ao redor, observando se a máquina é capaz de lidar com o minúsculo entrelaçamento no núcleo do filtro. Atrás deles e em torno da sala, entre prateleiras e bancadas desordenadas, se encontram meia dúzia de outras impressoras, algumas com grandes mesas de aquecimento, outras mais estreitas, com deltas mais altos se movendo para cima e para baixo.
Do outro lado do porão, uma técnica está trabalhando em uma trituradora que tornará possível reciclar lixo plástico como o “filamento” de polímero que as impressoras usam como matéria-prima. De vez em quando ela olha de relance uma máquina menor, que fabrica uma nova criação. “Ó, essa é uma torre de DVD”, ela diz, distraída. “Tô fazendo essa pra minha casa”.
Na máquina grande, o filtro parece ser um sucesso. “Parece que terminamos a corrida”, Pearce diz, radiante. Ele repetirá isso muitas vezes durante a tarde.
O Grupo de Pesquisa Pearce, estabelecido em uma série de escritórios e laboratórios na velha escola de mineração da congelada Península Superior de Michigan, tem um certo ar forçado, mas também tem uma missão extremamente séria: acelerar o desenvolvimento da impressão 3D e de outras tecnologias de replicação – para criar tecnologias capazes de transformar a vida de pessoas ao redor do mundo.
O local estava à caminho de se tornar o tipo de centro de produção que aspira espalhar pelo globo: um espaço onde as pessoas podem trabalhar em interação fluída com tecnologias escaláveis, aplicáveis em cada parte de suas vidas.
Esta é a visão desta nova tecnologia no que ela tem de melhor. Por um momento, ela foi popularmente aceita, com novas histórias diárias sobre impressão 3D vendendo um futuro descontroladamente otimista onde todos os bens seriam produzidos sem esforço.
A bolha explodiu quando as pessoas viram as impressoras 3D realmente existentes, especialmente em suas nascentes versões comerciais nas novas de lojas de “makers” (“fazedores”) em grandes cidades: pequenas máquinas que lentamente fabricavam brinquedos em filamento de polímero plástico viscoso. Houve também uma reação contra parte das celebrações utópicas das novas tecnologias nos “espaços makers” que estavam brotando.
O movimento maker surgiu de diversas fontes – adeptos do faça-você-mesmo passando da solda para a fundição e além; hipsters atravessando das fantasias steampunk para a realidade; defensores da contra-cultura explorando novas possibilidades – mas todas elas traziam em comum algo da ideia da nova esquerda de que qualquer revolução na produção teria de incluir um compromisso com um processo de produção que oferecesse autenticidade e sentido por meio de uma obrigação renovada com o mundo físico.
Essa é uma boa coisa para as pessoas perseguirem em suas vidas, mas generalizá-la como uma precondição para todo um sistema de produção transformado significaria um novo tipo de tormento. Isso simplesmente reinstalaria uma outra forma de trabalho obrigatório no lugar do trabalho assalariado. A retórica sugerindo que ao invés de comprar utensílios domésticos, as pessoas teriam de fundir suas próprias torradeiras no estilo do festival “Burning Man” em um armazém convertido em algum bairro descolado é exatamente o tipo de visão de pesadelo que fará as pessoas correrem de volta para o capitalismo neoliberal num piscar de olhos.
Para muitos, isso lembrava um retorno às celebrações do “pequeno é belo” (ou “o negócio é ser pequeno“) dos anos 70, e todo o enfado que veio com elas. Além disso, quando uma arma impressa em 3D por um “libertário” de direita no sul dos EUA ganhou as manchetes, muitos tiveram uma desculpa para deixar essa tecnologia para trás, por completo.
No discurso hegemônico, a impressão 3D havia se tornado outra fonte de medo; já entre a esquerda, ela passara a representar outra tola gambiarra tecnológica, desviando as pessoas do duro fardo da política real.
Dada a imagem pública da impressão 3D, a sua desconsideração é compreensível, mas é um erro, de qualquer maneira. A impressão 3D – devidamente chamada de replicação – tem estado por aí por não mais que trinta anos: foi criada como um processo de prototipagem no começo dos anos 80.
Patentes e altos custos por unidade mantiveram a tecnologia restrita à esfera industrial, mas em 2005, o engenheiro britânico Adrian Bowyer começou um projeto conhecido como “reprap” (do nome em inglês “replicating rapid prototyper”, algo como “prototipadora rápida e replicável”) para projetar coletivamente uma impressora 3D de código aberto que fosse não apenas acessível mas que pudesse também imprimir as peças necessárias para montar uma cópia de si mesma, iniciando assim uma cadeia infinita de replicação.
A primeira reprap, chamada de Darwin, foi produzida em 2007. É uma do tipo “meccano”, cubos emoldurados em aço com bicos móveis zunindo. A maior parte dos numerosos modelos comerciais de impressoras 3D hoje no mercado são alguma versão de repraps.
O desenvolvimento de um modelo de código aberto seguiu em paralelo, com resultados impressionantes. Versões capazes de imprimir objetos com mais de um metro e meio em cada dimensão, como a Gigabot, estão agora disponíveis por poucos milhares de dólares, e os materiais disponíveis para uso foram expandidos do familiar polímero pegajoso para incluir madeira sintética, cerâmica, e eventualmente o cálice sagrado, metal.
Conforme aumentam as evidências e a velocidade em que elas aparecem, e ciclos de reforço em robótica tornam a reprap uma máquina genuinamente autônoma, as possibilidades de replicação cotidiana se expandem exponencialmente. O desenho da máquina é um projeto global de código aberto, e também o são os projetos de produtos, enviados pelos usuários para o Thingiverse e sites similares.
Silenciosamente, depois que baixou a poeira da moda na mídia, a replicação escalável começou a rumar em direção a um ponto de conversão, um momento em que todas as sub-tecnologias atravessam um certo ponto de desenvolvimento, e a replicação entra em um novo estágio onde seus produtos são radicalmente competitivos com os processos industriais sob controle privado.
É isso que torna a replicação diferente dos movimentos de “alternativas” que vieram antes. Esses movimentos tentavam dar as costas à produção industrial e rumar para formas de fazer as coisas mais plenas de sentido, mas menos eficientes. A replicação tem o potencial de ser tanto mais plena de sentido quanto mais eficiente.
De forma bastante simples, o princípio da reprap é que para todos os produtos que podem ser produzidos, com o passar do tempo o custo por unidade se aproxima do zero (mesmo que talvez seja necessário um tempo considerável). Ou seja, se as máquinas de reprap em si se tornarem mais eficientes e capazes de trabalhar de maneira mais efetiva, com o tempo de supervisão se aproximando de zero, seu suprimento de energia será de energia renovável, ela em si será impressa, e materiais recicláveis providenciarão muitas das matérias-primas.
Tamanha transformação da produção de objetos comuns deve derrotar as estratégias capitalistas de recuperação e re-enclausuramento, por que ela inerentemente debilita as precondições das relações capitalistas de valor. Simplesmente promover e ampliar os usos de tal tecnologia para a produção na vida-real se torna um ato político (ainda que um ato meramente necessário, não suficiente).
É menos importante se tais serviços serão estendidos como atividades coletivas gratuitas, ou na base de algum tipo de taxas mínimas, contanto que eles sejam ampliados na vida cotidiana – nos levando assim mais próximos do ponto em que uma mudança em quantidade se torna uma mudança em qualidade, e sistemas gerais de valores começam a serem transformados.
A replicação é, portanto, uma nova força de produção, mas é também a raíz de um novo modo de produção, capaz de fundamentar relações sociais mais livres.
A promessa e a possibilidade da replicação não é aquela de distopias tecnológicas robóticas, que ocupam as fantasias hegemônicas e que implicitamente envolvem a rendição da autonomia humana.
A replicação não oferece um fim às atividades necessárias, mas oferece sim a possibilidade de uma camada de vida que se aproxima de um comunismo cotidiano, onde muitas das necessidades da vida podem ser produzidas ou em replicadores residenciais ou, para objetos mais complexos, em um centro de produção local, uma entidade que seria um ponto coletivo de atividade livre ou um serviço baseado nos clientes.
Quando as replicadoras se combinam com outras tecnologias como tornos CNC, a maioria dos produtos hoje comprados no interior do circuito capitalista global pode ser produzida por um custo vastamente reduzido, em um nível comparável de qualidade. Mobília, grandes equipamentos, casas inteiras podem ser produzidas. As últimas poderiam ser impressas com encanamentos, cabeamento elétrico e de fibra-ótica já embutidos.
Esboçar em detalhes os possíveis futuros é um velho mal hábito da esquerda; no entanto, se recusar a falar qualquer coisa sobre possibilidades concretas é um hábito mais recente, igualmente auto-destrutivo – então deixe-me dizer algumas palavras sobre uma possível trajetória associada ao crescimento da replicação.
Centros de replicação ativos no interior das estruturas econômicas existentes poderiam ter apelo para três grupos:
- Os politicamente auto-motivados, muitos deles buscando vidas criativas e autônomas, que querem reduzir radicalmente seu custo de vida sem perseguir o velho caminho boêmio da virtuosa penúria;
- Os pobres, com variados graus de auto-consciência política, para quem tal produção de custo próximo ao zero pode se tornar uma necessidade;
- Os chamados “makers”, que almejam ter um grau específico de envolvimento na produção por uma variedade de razões.
Grande parte da atenção tem se focado no último grupo, mas são os outros dois, bem maiores, que oferecem a promessa de um novo movimento de produção capaz de combinar interesses individuais com o benefício coletivo e de oferecer a promessa de expansão autônoma; um movimento inerentemente político e transformador.
Mesmo em uma economia capitalista, centros de replicação podem oferecer várias possibilidades de conexão, permitindo que as pessoas que ativamente os usam produzam suas coisas virtualmente de graça, pagando a eles uma taxa regular por produção ilimitada – similar à filiação a uma academia de ginástica. Tal processo poderia criar um movimento de compensação de relações pós-capitalistas dentro da estrutura existente, e assim se tornar uma força política em seus próprios termos, com seus próprios interesses.
Um movimento desses encararia grande oposição, mas muito da força dessa oposição é exagerado, mesmo (ou especialmente) por setores da esquerda. A propriedade intelectual e o enclausuramento do conhecimento tem sido citados, mas o Movimento de Replicação é hoje tão massivamente baseado em código-aberto, e com tal variedade de métodos, que o re-enclausuramento é virtualmente impossível. A recuperação e re-mercadificação pelo capitalismo tem sido citados, com os exemplos da internet “livre” e do compartilhamento cultural, mas o ponto do Movimento de Replicação é como ele cria um processo de produção que não gera a possibilidade de lucro, exceto em um grau minúsculo, quase em vias de desaparecimento.
A “cultura livre” da internet nunca sucedeu por que os produtos culturais valorizados permaneceram escaços o bastante para serem mercadificados. Não há escassez de músicas, filmes ou escrita livres na rede, mas Taylor Swift e The Wire permanecem como material proprietário. O objetivo desta “revolução material” é aplicar a produção que se aproxima de sem custo para objetos comuns, não para objetos específicos.
Regimes legais como regulação opressiva poderiam também ser aplicados. A resistência a essas tentativas de varrer a competição contra o capitalismo se tornaria então uma luta política explícita – com a vantagem de ser conduzida como uma luta por algo já estabelecido, ao invés de em nome de um futuro em potencial.
Isso é análogo ao papel das ocupações em massa nas lutas urbanas, que ocupam um território antes de fazer uma reivindicação mais articulada do direito a ele.
Um movimento que leve a sério a ideia de que a replicação representa um novo e libertador modo de produção leva a sério a dimensão de Marx presente tanto em sua observação de que a roda de moinho gera o senhor feudal e que a máquina a vapor gera o capitalista, quanto em seu “Fragmento sobre as Máquinas”, onde ele reflete sobre a transformação na forma-valor que acompanharia a transição para máquinas altamente autônomas.
A reorientação do foco na transformação da produção como um ato político também envolve alguma reflexão sobre a longa história das políticas revolucionárias. Uma das grandes contribuições do marxismo para tais políticas tem sido a insistência em que possibilidades radicais vêm não apenas da vontade coletiva, mas de uma compreensão da situação externa, particularmente de seus aspectos econômicos.
Parece bem possível que a replicação seja parte de um novo estágio tecnológico de desenvolvimento que colocará o modo capitalista em crise em seu nível mais básico, enquanto também oferecerá um sistema de produção igualitária e libertadora que não é burocrático nem dependente de trabalho assalariado.
Contudo, é crucial separar o movimento político-tecnológico transformador e libertador de um que se torne incorporado dentro de uma estrutura semi-espiritual, reorientado para o ato existencial da produção. Esse conceito, central para o movimento maker, se tornou enredado na compreensão do público, com resultados desastrosos.
A ideia de que qualquer libertação da produção precisa envolver um íntimo re-engajamento com todos os aspectos dela não é libertação, mas simplesmente uma restauração de um estágio anterior de compulsão, com uma forte dose de moralismo incluída. Tal ênfase repetiria todos os erros do movimento de contra-cultura dos anos 60, particularmente a ideia de que a alienação humana poderia ser substancialmente superada através de um ato de vontade da parte de indivíduos e de pequenos grupos.
Essa ideia levou à criação de sociedades baseadas em estágios anteriores de produção, com a esperança de que uma essência humana livre – não mais se curvando sob o peso do opressivo capitalismo – poderia brotar totalmente formada.
Embora relativamente poucas pessoas tenham feito a ruptura e passado realmente a viver em comunas auto-sustentáveis, a ideia que as sustentava – de que qualquer sociedade pós-capitalista demandaria um re-envolvimento massivo na produção e a preservação de seus aspectos repetitivos e maçantes – passou a dominar as concepções sobre um novo mundo.
A propósta implícita era de que a autenticidade do ato não apenas compensaria pelos prazeres da modernidade renunciados, mas de que tais prazeres deixariam de ser significativos por completo. O pessoal da contra-cultura se despojaria de seus desejos mercadificados, e sua humanidade reemergeria, plena e completa.
Na realidade, é claro, os bons sentimentos iniciais rapidamente se tornaram um enfado, os gostos e desejos dos seres humanos modernos nunca os deixaram, e o movimento colapsou dentro de meia dúzia de anos. A contra-cultura foi o último suspiro (ou o mais recente) do impulso pastoral que corre através das civilizações desde o nascimento das cidades, e onde habitam as noções do “nobre selvagem” – a ideia contraditória de que nós podemos pegar a nossa subjetividade moderna e decantá-la em uma forma anterior.
A proposição de que através da pura força de vontade ética, seres humanos formados na modernidade poderiam superar seus desejos contraditórios, individualistas e coletivistas, em uma fusão de ambos, preparou o movimento para um rápido fracasso e colapso, rumo à reversão pseudo-ética dos anos Reagan-Thatcher. Uma revolução na produção precisa ser uma liberação de tempo e de atividade vital, não uma adição de novas obrigações.
Isso não quer dizer que, uma vez que os custos de produção em massa da vida comecem a tender rumo ao zero, as pessoas não escolherão áreas da vida que despertem seus apetites particulares, seja na produção física, seja por usar o tempo liberado para renovadas atividades vitais. Mas isso só pode vir de uma escolha, não de uma necessidade imposta, e é essa possibilidade que dá à replicação uma orientação comunista.
As possibilidades da tecnologia também servem para reunir o destino dos relativamente prósperos e dos relativamente pobres com o dos miseráveis do mundo. Assim, enquanto o Instituto de Pesquisa Pearce trabalha em um plano para colocar duas repraps completas em uma maleta que poderia ser levada a qualquer lugar para fazer filtros de água, peças de máquinas, ferramentas e utensílios, e mesmo outras repraps, os objetos do mundo presente podem ser adaptados ao mesmo tempo.
Se existe uma visão de como uma vida genuinamente transformada pode parecer, os laboratórios do Instituto de Pesquisa Pearce são uma primeira aproximação – um núcleo de pessoas à vontade com a tecnologia, a utilizando de forma flexível e capaz de mudanças frequentes, com círculos sempre crescentes ao seu redor, capazes de terem acesso à produção e à inovação sem precisarem ser dominados por ela.
O que podemos saber com certeza sobre suas possibilidades? Apenas que elas não se desenrolarão precisamente da maneira prognosticada acima – isso nunca acontece. Mas é necessário imaginar as possibilidades mais doida destas novas tecnologias, e uma ideia expandida daquilo que suas políticas revolucionárias poderiam representar.
Be First to Comment