Um pesar do embaixador francês na Argélia sessenta anos após o fato, uma visita oficial do secretário de Estado para assuntos de veteranos e, do outro lado, um silêncio sombrio. Foi o que valeram aos olhos da República Francesa 45 mil indigènes massacrados em maio e junho de 1945 em Sétif, Guelma e Kherrata. Seus descendentes não podem contar com um dia de comemoração nacional, nem com o reconhecimento presidencial da responsabilidade do Estado, como foi o caso da deportação do povo judeu durante a Segunda Guerra Mundial, em 1995.
O dia em que a onda de chacinas começou na Argélia é simbólico: oito de maio de 1945, dia da vitória na Europa (VE Day). Os assassinatos foram realizados por um exército colonial, apoiado por civis “europeus”, e revelam um véu de sangue que a história oficial que exalta a libertação da ocupação nazista prefere não ver.
Naquele dia a França estava em júbilo, experimentado a alegria da soberania recém-recuperada. Em todo lugar, da metrópole às colônias, as ruas se encheram de aglomerações espontâneas. Esse também foi o caso nos “departamentos franceses da Argélia”, embora não fossem mais administrados pelo regime fascista de Vichy desde os desembarques dos Aliados e o chamado golpe de novembro de 1942.
Havia bandeiras francesas por toda parte, mas aqui e ali, especialmente no norte de Constantina, bandeiras verdes e brancas afixadas com uma lua crescente e uma estrela vermelhas competiam com elas. Tais bandeiras foram erguidas por ativistas nacionalistas do Partido Popular da Argélia (PPA), que pediam a libertação imediata de seu líder, Messali Hadj, exilado à força e preso em Brazzaville.
Intoxicados por um momento que os encheu de um senso ainda maior de sua própria superioridade, as autoridades francesas e os pieds-noirs, como são chamados os europeus que viviam no norte da África sob ocupação francesa, viram nessas bandeiras argelinas uma ameaça existencial. Eles expuseram a hipocrisia daqueles que beijaram, abraçaram e exultaram para celebrar o fim do jugo nazista na Europa, mesmo quando eles próprios eram atores na repressão colonial da Argélia.
Quando alguns milhares de argelinos aproveitaram a oportunidade para marchar em apoio à independência de Setif e Guelma, o cenário foi montado. A gendarmerie (força policial militar) francesa local entrou contra as manifestações, apreendendo cartazes condenando o domínio colonial e disparando contra manifestantes. A violência logo inspirou um levante em toda a Argélia – que as autoridades francesas decidiram esmagar antes de ameaçar seu domínio sobre o país.
A repressão dessas manifestações pacíficas abriu uma fase de brutalidade sem precedentes, não vista desde a invasão francesa em 1830. “Tome todas as medidas necessárias para reprimir todos os atos anti-franceses por uma minoria de agitadores”. Foi com esse telegrama sanguinário, enviado em 11 de maio, que o general Charles de Gaulle, então chefe do governo francês provisório, deu total permissão ao exército colonial para impedir a unificação de um movimento nacionalista argelino que, até então, estava dividido por importantes linhas de fratura estratégica.
O próprio movimento comunista francês uivou com os lobos, demonstrando sua adesão às teses da unidade nacional metropolitana e seu compromisso em preservar a integridade do Império colonial. O diário L’Humanité, de 19 de maio, dificilmente poderia reunir palavras fortes o suficiente para denunciar os “líderes pseudo-nacionalistas que conscientemente tentaram enganar as massas muçulmanas, jogando assim o jogo dos senhores na tentativa de partir a população argelina e os povo da França”. O Partido Comunista Francês (PCF) foi ainda mais longe, pedindo “medidas a serem tomadas contra os líderes dessa associação pseudo-nacional, cujos membros participaram dos trágicos incidentes”.
Foram as cidades de Sétif, Guelma e Kherrata – todas localizadas nos arredores de Constantina – que pagaram o preço mais alto pela repressão. A República Francesa, empenhada em cumprir sua reputação de não discriminação, mostrou uma verdadeira cegueira ao atacar indiscriminadamente homens, mulheres e crianças.
A infame execução de quarenta e cinco batedores muçulmanos da tropa de Enoudjoum em 16 de maio não foi um ato isolado. Fazia parte de uma estratégia de terror mortal sistematicamente implantada em toda a região. As valas comuns transbordando corpos anônimos eram frequentes. Quando o monstro nazista caiu na Europa, Boucif Mekhaled relata em seu livro Chronicles of a Massacre (Crônicas de Um Massacre, sem tradução no Brasil) como o exército francês usou um forno de crematório por dez dias para impedir que entes queridos identificassem os corpos de seus mortos.
Isso precipitou a chegada do novo ministro do Interior, o socialista Édouard Depreux, e com ele o fim dos massacres. A brutalidade indescritível com a qual a República reprimiu manifestações pacíficas traiu o intenso medo dos colonos (colossi) com pés de barro, que sabiam bem que suas posições estavam ameaçadas pelo desenvolvimento do sentimento nacionalista argelino. Eles queriam dar um golpe e lidar com a questão da Argélia de uma vez por todas.
Mas, de fato, eles alcançaram o oposto. Os massacres de Sétif, Guelma e Kherrata foram o prólogo trágico da Guerra da Argélia, e serviu para levar toda a população à luta pela independência. Kateb Yacine escreveu sobre esse momento decisivo que experimentou quando jovem: “Foi em 1945 que meu humanismo foi confrontado pela primeira vez na mais atroz das exibições. Eu tinha vinte anos. Nunca esqueci o choque que senti na frente da impiedosa chacina de vários milhares de muçulmanos. Foi assim que meu nacionalismo se desenvolveu.”
Na costa norte do Mediterrâneo, esses assassinatos em massa em Constantina ainda são pouco discutidos, se é que o são. A ignorância – ou, ainda mais cínico, o desejo de “avançar” – em que a classe política se afunda testemunha o constrangimento da República Francesa sobre seu passado colonial. Isso não é apenas cuspir na cara de ex-súditos do império colonial e seus descendentes, é a matriz do racismo de Estado que tem como alvo árabes, negros e ciganos até hoje.
É o que torna possível os incontáveis crimes e atos de violência perpetrados pela polícia com quase total impunidade. Somente na semana passada, policiais perseguiram um jovem árabe durante a noite. Temendo por sua vida, ele preferiu pular no rio do que correr o risco de ser preso. Um morador filmou o riso da polícia, brincando e dizendo que um “bicot (uma ofensa racista contra os árabes) como ele não nada”. Isso provocou muita angústia àqueles familiarizados com a memória de outubro de 1961, quando a polícia parisiense afogou dezenas de argelinos no Sena. Mas isso não passa de um espasmo de uma República doente com seu inconsciente colonial, uma República pela qual a descolonização continua sendo uma questão de vida ou morte.
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