2016 marcou o quinquagésimo aniversário da expressão “Black Power”, cunhada por Stokely Carmichael, e também da formação do Partido dos Panteras Negras (PPN).
Criado pelos ativistas radicais de Oakland, Huey Newton e Bobby Seale, os Panteras Negras logo se tornaram a maior manifestação da ideologia “Black Power” após a sua formação em outubro de 1966. No entanto, muito do que se sabe acerca dos Panteras permanece no esquecimento ou foi distorcido, e a iconografia das armas surge à frente de um conhecimento aprofundado dos seus objetivos.
Para pôr a história em pratos limpos, o texto que se segue é um manual sobre o Partido dos Panteras Negras – um grupo que meio século após a fundação ainda tem muito para nos ensinar sobre organização, ideologia e os perigos de defender o socialismo revolucionário nos Estados Unidos.
Origens e objetivos
O Partido dos Panteras Negras seguiu os passos dos grupos negros de esquerda que o precederam, como a African Blood Brotherhood e o National Negro Congress. Tal como os antecedentes, os Panteras Negras adotaram tanto o nacionalismo negro como o socialismo. Seale e Newton pretendiam criar uma organização que pudesse defender a comunidade negra contra a brutalidade policial, dando ao mesmo tempo uma nítida visão anticapitalista.
Ao contrário das principais organizações do Movimento dos Direitos Civis, o PPN tinha a sua base potencial no “Lumpemproletariado Negro Urbano”, como explicou um dos seus primeiros líderes, Eldridge Cleaver, no manifesto On the Ideology of the Black Panther Party
Para Cleaver e outros líderes do PPN, o lumpemproletariado negro era composto por quem tem estado “perpetuamente na reserva” – os Afro-Americanos, em Oakland e não só, que não conseguiam encontrar trabalho ou obter a formação necessária para competir numa força de trabalho em modernização. Eles dirigiram-se a este segmento da população – em vez do agente tradicional da revolução, a classe operária organizada – para potencializar a sua luta contra a supremacia branca, o imperialismo e o capitalismo.
Nascido em Oakland, cidade com longa história de radicalismo e luta pelos direitos civis, o PPN acabou por formar núcleos por todo o país – de Nova Iorque a Chicago e no Sul, em locais tão distintos como Winston-Salem, Carolina do Norte e New Haven, Connecticut. Nos seus tempos áureos, o PPN jactava mais de 5.000 militantes a nível nacional. E chegavam a muitos mais através do seu jornal, o Black Panther, que tinha uma circulação de 250.000 exemplares.
O que dava coerência aos vários núcleos não era forçosamente uma liderança do topo para a base, mas um ethos de Black Power, organização comunitária e o socialismo que canalizava a energia dos jovens Afro-Americanos descontentes com a hipocrisia do liberalismo da Grande Sociedade e com a insensibilidade do conservadorismo da Nova Direita. Surgiram líderes jovens e talentosos a nível local, em especial Fred Hampton, em Chicago.
Na resistência à brutalidade policial em Oakland, os Panteras escolherem a autodefesa armada, uma tática empregada por muitos Afro-Americanos em todo o Sul do país. A ligação geográfica não era uma coincidência. Fundada por dois sulistas (Seale nasceu no Texas, Newton no Louisiana), o PPN partilha o seu símbolo icónico com a Lowndes County Freedom Organization no Alabama (fundada por Carmichael). Ambos os grupos desafiaram diretamente a supremacia branca nas bases.
Mas para o PPN, a luta contra o racismo seria incompleta sem uma luta contra o capitalismo. A sua plataforma em dez pontos, de 1966, a mais clara expressão programática da política do grupo, apresentava uma análise crítica, tanto da supremacia branca, como do capitalismo na América. Entre as suas reivindicações estavam o “pleno emprego”, “habitação digna” e um “plebiscito fiscalizado pelas Nações Unidas” para decidir se os Afro-Americanos desejavam separar-se dos EUA e criar a sua própria comunidade auto-organizada.
Cada um desses objetivos, juntamente com os outros descritos no programa de dez pontos, apontavam para uma organização que já estava a juntar os vários eixos do pensamento de esquerda predominantes no final da década de 1960.
As atividades do Partido dos Panteras Negras
Entre as principais atividades dos Panteras estavam os seus serviços sociais, ou “programas de sobrevivência”. O mais famoso era o programa de pequeno-almoço gratuito, que fornecia refeições a muitos jovens Afro-Americanos pobres em Oakland. Outro era o programa local de educação para a saúde, que ajudava os Afro-Americanos sem acesso a cuidados de saúde de qualidade.
Todos juntos, os mais de sessenta programas de sobrevivência permitiram aos Panteras Negras ganhar o apoio de muitos operários Afro-Americanos em luta, melhorando de imediato a qualidade de vida dos moradores enquanto apontavam a um futuro socialista.
O PPN também ficou conhecido por patrulhar a ação dos agentes policiais de Oakland nas ruas. Armados com espingardas e livros de leis da Califórnia, eles circulavam na cidade e fiscalizavam as abordagens policiais, procurando diminuir a brutalidade policial. O uso das armas levou a Assembleia Geral da Califórnia a aprovar, e o então governador Ronald Reagan a sancionar, o Mulford Act de 1967, que proibiu o porte público de armas carregadas.
A polícia também não viu com bons olhos a fiscalização armada dos Panteras. No mesmo ano da aprovação do Mulford Act, uma blitz de trânsito descambou num tiroteio entre Newton e o agente policial de Oakland, John Frey, que morreu no local. Os julgamentos de Newton que se seguiram tornaram-se causas importantes para a esquerda americana, que tomou o slogan “Free Huey” como o grito contra a opressão, a brutalidade policial e a supremacia branca na sociedade.
A inquietação aumentou nos meios governamentais sobre a ameaça que os Panteras colocavam à segurança nacional. Para além das batidas e emboscadas policiais, o FBI, sob os auspícios do seu famigerado COINTELPRO (Counter Intelligence Program) abriu guerra contra os Panteras. O FBI olhou com especial interesse para os núcleos de Oakland e Chicago, semeando a discórdia entre os membros do PPN e muitas vezes deixando os militantes inseguros sobre em quem confiar.
O assassinato de Hampton e de Mark Clark, líder do Partido dos Panteras Negras no estado do Illinois, durante uma invasão policial no apartamento de Hampton, em 4 de dezembro de 1969, mostrou até onde as autoridades locais e nacionais estavam dispostas a ir para acabar com o Partido dos Panteras Negras. Até os programas de pequeno-almoço gratuito – vistos como fonte potencial de radicalização duma nova geração de Afro-Americanos – foram alvo do FBI e da polícia local.
Sob o peso de uma severa repressão estatal, acabaram por surgir divergências graves acerca das diversas atividades do grupo. No início dos anos 1970, os Panteras Negras estavam dividido tanto sobre a linha ideológica, como tática.
Huey Newton queria centrar a atenção do PPN no ativismo local, formação e programas de serviço comunitário. Eldridge Cleaver – que chegou a ser o ministro da informação do PPN, mas que fugira para Cuba e depois para a Argélia na sequência de uma cilada da polícia de Oakland – pressionava o partido para se preparar para a insurreição armada nos Estados Unidos. O racha foi colocado à vista de todos em 1971, quando Newton criticou abertamente Cleaver nas páginas do Black Panther.
Quando Elaine Brown se tornou a presidente do partido, em 1973 – substituindo Newton, que estava exilado em Cuba –, fez o partido regressar fortemente à sua orientação para as bases. Brown deu destaque ao serviço comunitário, gerindo a Oakland Community School nos anos 1970 e formando nesse processo centenas de crianças Afro-Americanas de Oakland.
Durante o seu mandato, o PPN tornou-se um importante agente político em Oakland e na Califórnia. Bobby Seale fez uma grande campanha para prefeito de Oakland em 1973 e 1975 (ficando em segundo, entre nove candidatos, após perder no segundo turno), e Brown entrou na corrida para o conselho municipal em 1973 e 1975 (nas duas vezes ficou perto de ganhar). Brown apoiou também a candidatura bem sucedida do Democrata Jerry Brown a governador em 1974 (embora seja menos evidente no que é que esse apoio beneficiou o eleitorado do PPN).
No fim das contas, a visão de Newton para o PPN acabou por triunfar. Mas o seu regresso do exílio em 1976 desencadeou outra luta pelo poder que acabou por destruir o PPN.
A relação com a esquerda
O Partido dos Panteras Negras não se isolou do resto da esquerda. O seu núcleo de Chicago, por exemplo, tinha uma relação de trabalho com os Young Patriots, uma organização composta sobretudo pelos filhos e filhas dos migrantes brancos dos Apalaches. Em 1969, o PPN convidou os Young Patriots e outras organizações de esquerda para virem a Oakland participar na United Front Against Fascism Conference.
A liderança de Hampton era crucial para estabelecer esta ligação. Enquanto líder do núcleo de Chicago, Hampton dirigia-se aos brancos pobres como parte do seu esforço para forjar uma aliança antirracista e anticapitalista entre os despossuídos. Como explicou Hampton, “Não vamos lutar contra o racismo com racismo, mas sim com solidariedade. Não vamos lutar contra o capitalismo com o capitalismo negro, mas sim com o socialismo”. O seu assassinato em 1969 devastou o Partido dos Panteras Negras, retirando do movimento um dos seus líderes mais jovens e promissores.
Os Panteras também estiveram envolvidos no movimento antiguerra, considerando que a sua luta pela libertação negra e a autodeterminação estava ligada aos movimentos de resistência no Vietnã, Argélia e outros países. Chegaram a abrir um núcleo na Argélia em 1969. Quando se envolveram no movimento antialistamento (“uma das primeiras alianças bem sucedidas que tivemos”, sublinhou Seale), os Panteras deixaram claro que os abusos que os Afro-Americanos sofriam nas mãos da polícia nos EUA eram o reflexo da repressão que os vietnamitas e outros grupos sofriam dos militares norte-americanos.
Os textos de Newton sobre a ideologia do Partido dos Panteras Negras no fim dos anos 1960 mostram uma tendência mais ampla entre os radicais Afro-Americanos – de Martin Luther King, Jr a Stokely Carmichael – que ligavam o racismo no país ao imperialismo no estrangeiro. Newton, por exemplo, exprimiu muitas vezes o seu apoio à Palestina nos seus artigos, que eram muito lidos.
Nos anos 1970, enquanto membros da esquerda Black Power mais ampla, os Panteras entraram nos debates sobre o caminho a seguir pelos Afro-Americanos após o declínio do Movimento pelos Direitos Civis. Figuras de proeminentes do movimento Black Power, como Amiri Baraka (LeRoi Jones antes da sua acessão ao nacionalismo negro no fim dos anos 1960), tornaram-se reconhecidos marxistas e combateram a retórica nacionalista.
Os Panteras, embora com menos nacionalismo negro do que a imaginação popular lhe dá, nunca renegou a sua marca Black Power. Mas gastaram bem mais tempo a refletir sobre a melhor combinação de nacionalismo negro e socialismo – e influenciou a prática de outros grupos de esquerda nesse processo.
O legado dos Panteras
A importância do trabalho dos Panteras Negras permanece ainda hoje, por muitas razões. Primeiro, recorda-nos que o problema da violência policial está conosco há muito tempo (Martin Luther King, Jr até o mencionou no seu muito citado, e muitas vezes mal interpretado, discurso do “I Have a Dream”). De fato, os protestos que se seguiram à morte de Denzil Dowell em North Richmond, uma localidade perto de Oakland, em abril de 1967, tiveram um papel determinante no crescimento do PPN, que passou de uma pequena organização de quadros a uma grande força política e social.
Em segundo lugar, o PPN mostra-nos um bom modelo de ativismo de base e de ideologia em ação. Enquanto o grupo era dilacerado pelos conflitos entre Newton e Cleaver nos anos 1970, os Panteras continuaram a fazer um importante trabalho na região de Oakland. Os seus “programas de sobrevivência” dirigiam-se a Afro-Americanos pobres que não conseguiam apoio da administração local. E sobretudo, eles ligaram o seu programa de educação e pequeno-almoço gratuito a um projeto político mais amplo. Enquanto mistura genial de prática e idealismo, o trabalho comunitário do PPN foi o trabalho mais revolucionário que fizeram.
O Partido dos Panteras Negras foi também um importante campo de preparo para as mulheres ativistas Afro-Americanas, como Kathleen Cleaver e Elaine Brown. Tal como no Movimento pelos Direitos Civis, as mulheres fizeram boa parte do trabalho básico do PPN.
Isto não quer dizer que o PPN fosse um exemplo no que toca aos direitos das mulheres. Quando Seale e Newton formaram o grupo, dirigiram o seu apelo aos “irmãos do bairro”. (Em outras ocasiões, a sua retórica foi bastante progressista: em agosto de 19760, Newton tornou-se um dos primeiros líderes Afro-Americanos, dentre todas as linhas ideológicas, a exprimir solidariedade com os gays e lésbicas norte-americanos.) Mesmo durante o mandato de Brown na presidência do PPN; a direção do grupo permaneceu esmagadoramente masculina e as mulheres Panteras eram sujeitas a abusos verbais e físicos.
Ainda assim, Brown e outras mulheres Panteras Negras conquistaram o seu espaço e deram uma imensa contribuição para a organização.
Finalmente, o legado do Partido dos Panteras Negras pode ser visto hoje no movimento Black Lives Matter. As suas reivindicações por justiça econômica, poder comunitário e reparações fazem lembrar a plataforma de dez pontos do Partido dos Panteras Negras. E tal como os movimentos Black Power e dos Direitos Civis, o movimento Black Lives Matter teve de enfrentar repetidamente a cobertura midiática negativa e a crítica de muitos liberais norte-americanos pedindo para “irem mais devagar”.
Agora que se completam cinquenta anos desde a sua fundação, os Panteras devem ser recordados por mais que as suas boinas pretas e as armas. Apesar das suas falhas, eles combinaram a urgência e a transformação numa ideia política poderosa, defendendo uma aliança multirracial contra o racismo, o capitalismo e o imperialismo que resultou em ganhos tangíveis para os mais explorados. Essa ideia continua a ser tão inspiradora hoje como foi então.
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