É frequente a expressão “presença forte” para indicar a força da personalidade de alguém. Eu diria que, para mim e alguns outros, Mario Pedrosa foi a princípio uma ausência forte, no fim da década de 1930 e no começo da de 1940, quando estava exilado e era meio lendário. Eu me familiarizei indiretamente com ele por meio de Lívio Xavier, com quem convivi muito naquele tempo e depois. Ambos nasceram no mesmo ano, 1900, estudaram juntos na Faculdade de Direito do Rio de Janeiro, ingressaram juntos no Partido Comunista em meados da década de 1920 e juntos aderiram por volta de 1930 à oposição trotskista.
Certa vez Lívio mostrou, para meu encanto de neófito no universo do socialismo, uma revista em francês dessa corrente, em que havia um artigo de ambos sobre a situação política do Brasil – Lívio com o pseudônimo de L. Lion, Mário com o de C. Camboa. Entre os dois havia uma dessas amizades raras, que duram sem nuvens a vida inteira, feitas de carinho, compreensão, admiração, afinamento completo e alegre convívio – como foram a de Sérgio Buarque de Holanda e Prudente de Moraes Neto, ou a de Décio de Almeida Prado e Paulo Emilio Salles Gomes.
Registro entre parênteses uma coincidência: eu era menino e estava passando uns tempos em Berlim com minha família, no ano de 1929, quando Sérgio Buarque de Holanda morava lá e quando por lá esteve Mario Pedrosa, a caminho da União Soviética para um curso de formação política – mas é claro que não os conheci àquela altura. Mario contava que se salvou de uma provável Sibéria, ou coisa pior, graças a certa doença prosaica que o acometeu na etapa berlinense e impediu o prosseguimento da viagem. Isso lhe deu a oportunidade de se informar melhor sobre a dissidência de Trotski, com a qual simpatizou imediatamente e à qual teria aderido em Moscou, se não tivesse ficado na Alemanha.
Só o conheci pessoalmente quando voltou do exílio em 1945. Ele veio a São Paulo e eu o visitei no quarto do Hotel Esplanada, onde estava de cama, cozinhando uma gripe. Fiquei encantado com a sua inteligência versátil e exuberante, mas não lembro do que falamos. Lembro apenas que se referiu a Lukács, que estava começando a ser lido aqui, pronunciando “Lükátch”, o que me pareceu altamente refinado.
Naquele mesmo ano, fundou no Rio o jornal Vanguarda Socialista e começou a difundir uma nova orientação, anti-stalinista, não mais trotskista, com destaque para a democracia e a valorização das posições de Rosa Luxemburgo, cuja obra contribuiu para difundir entre nós e de quem publicou em opúsculos Reforma ou revolução e A Revolução Russa, não lembro se ambos ou apenas um deles. Essas posições correspondiam às do meu grupo, liderado por Paulo Emilio Salles Gomes, e foram um fator de aproximação entre nós.
Em torno de Mario se juntaram no Rio principalmente antigos trotskistas ou simpatizantes, inclusive seu concunhado Nelson Veloso Borges, industrial abastado que escrevia no Vanguarda Socialista artigos com pseudônimo, sobretudo sobre a questão agrária, e era provavelmente o principal apoio financeiro do jornal. O Vanguarda Socialista estabeleceu um nível elevado no debate político da esquerda brasileira e contribuiu para aclarar as idéias dos que procuravam se orientar fora dos caminhos mais batidos. Sobre ele já foram produzidas excelente teses universitárias, das quais conheço a de Gina Gomes Machado.
Quando se fundou a Esquerda Democrática, em agosto de 1945, entraram para ela grupos e pessoas de várias matizes, desde liberais socializantes e antigos tenentistas até ex-trotskistas, não faltando simpatizantes do stalinismo, além de socialistas independentes, como o meu grupo. A certa altura, os integrantes do Vanguarda Socialista quiseram também incorporar-se. Nós, de São Paulo, manifestamos pleno acordo, mas houve resistências no Rio, onde a influência stalinista era acentuada. Apesar das reservas, eles acabaram não apenas entrando, como o seu jornal se tornou órgão da seção carioca, que não tinha conseguido ter um periódico, ao contrário de São Paulo, onde fundamos e mantivemos a Folha Socialista. Pouco depois, em 1947, a Esquerda Democrática passou a denominar-se Partido Socialista Brasileiro (PSB), por cessão dos socialistas remanescentes pelos quais fora fundado em 1933.
Lembro bem da atmosfera de desconfiança que a princípio, nas reuniões do Rio, envolvia Mario Pedrosa e o seu grupo, e também de momentos mais ou menos tensos, nos quais o exaltado professor Edgardo de Castro Rebelo, meio simpático ao Partido Comunista, nos irritava com o seu tom agressivo, de quem parecia estar sempre querendo brigar. Ele era um intelectual de grande valor, um dos raros professores socialistas na Faculdade de Direito do Rio, como também eram Joaquim Pimenta e Hermes Lima, o que valeu aos três cassação e prisão em 1935, quando foi perseguida e proscrita a Aliança Nacional Libertadora. Mario o admirava e tinha sofrido a sua influência quando foi seu aluno, por isso continha a irritação e apenas resmungava, deixando explodir os comentários negativos depois da reunião, na mesa do bar. Era interessante ver como esse homem ardoroso e combativo se continha por respeito ao antigo professor.
Naqueles anos 40 Mario Pedrosa trouxe indiretamente para a esquerda brasileira uma contribuição civilizadora de grande alcance por meio da sua crítica inovadora das artes. Estávamos então impregnados por concepções de cunho, digamos, pragmático, favorecidas pela leitura pouco flexível que se fazia do marxismo. Para essas concepções, as obras de arte e de literatura deveriam ser necessariamente interpretadas e avaliadas segundo a sua dimensão social e, não raro, segundo o seu significado político potencial. Em conseqüência, a crítica tendia a concentrar-se no conteúdo e a negligenciar as questões de forma, inclusive a fatura. Ora, ele surpreendeu um pouco ao valorizar a arte abstrata e os problemas de percepção da forma, não hesitando em recorrer à psicologia gestáltica na tese com que concorreu a uma cadeira na Escola Nacional de Belas Artes.
A este propósito lembro a posição paralela, desde 1941, de Paulo Emilio Salles Gomes, que praticou no Brasil um tipo de crítica cinematográfica igualmente voltada para a estrutura e a técnica dos filmes, sem subordinar-se à análise ideológica dos conteúdos. Digo isso também para assinalar que a sua personalidade apresentava afinidades com a de Mario Pedrosa, com quem tinha em comum a exuberância, a liberdade intelectual, o desprezo pelas idéias feitas e a disposição para criar o escândalo sempre que fosse necessário. Quem me chamou a atenção para essa semelhança foi Lívio Xavier.
Mais ou menos em 1954 eu me afastei da militância, embora continuasse membro do Partido Socialista. E, como tempos depois fui morar no interior, perdi contato com Mario Pedrosa, e creio que só nos vimos novamente quando voltei para São Paulo em 1961. Ele era então secretário do Conselho Nacional de Cultura, criado pelo governo Jânio Quadros. Notificado de que me haviam nomeado membro, recusei, pois não queria colaborar com o governo de Jânio, que tínhamos apoiado para prefeito de São Paulo em 1953, mas de quem nos separamos a seguir, salvo um grupo que saiu do Partido, gente como o nosso presidente Alípio Correia Neto, Aristides Lobo, Francisco Giraldes Filho, Caetano Álvares e outros. Mario, que provavelmente indicara o meu nome, não se conformou e veio a São Paulo me pedir para reconsiderar, o que fiz em atenção a ele. Creio que àquela altura ele estava confiando demais nos liberais, como aconteceu com diversos setores da esquerda como reação contra a ditadura stalinista. Devido ao Conselho, convivemos nas reuniões mensais, no Rio, mas por pouco tempo, pois logo aconteceu a renúncia de Jânio e, com ela, o nosso afastamento. Perdemos contato de novo e, creio eu, não o vi mais até a sua volta do segundo exílio, em 1977.
Dali por diante nos encontramos ocasionalmente em casa de amigos comuns, até que em 1979 ele me procurou mais de uma vez para falar do partido que os metalúrgicos do ABC estavam formando e para o qual queriam que eu entrasse. Tivemos conversas longas, uma delas partilhada por Plínio Mello, e estivemos juntos em sessões preparatórias no Sindicato dos Jornalistas. Eu resisti um pouco, pois tinha a intenção de nunca mais ser membro de organizações partidárias, devido às minhas lacunas como militante. Mas Mario insistiu e eu compreendi a sua insistência, pois o projeto era feito para nos interessar por mais de uma razão. Por exemplo: era a primeira vez que no Brasil os próprios operários assumiam esse tipo de iniciativa, com um senso de autonomia que os fazia desconfiar da adesão eventual de intelectuais e estudantes, atitude que Mario levou-os a modificar, e essa foi uma das suas grandes contribuições. Além disso, o projeto correspondia ao que queríamos fazer no passado e só conseguimos em escala muito limitada, quase simbólica, isto é, um partido decididamente de esquerda, com base operária, afastado das disputas do socialismo tradicional e procurando estabelecer critérios adequados à nossa realidade.
A este respeito Mário chegava ao paradoxo de proscrever as preocupações teóricas, em nome do que chamou de “empirismo salutar”. É o que podemos ver em artigos importantes que publicou no Jornal da República, nos quais, às vésperas da fundação do Partido dos Trabalhadores (PT), demonstrou o significado deste à luz do percurso histórico do Brasil, como organização política capacitada para transformar a sociedade a partir da classe operária. Esses artigos tiveram um papel importante na configuração e no encaminhamento do PT.
A minha adesão a este deve portanto muito à intervenção de Mario, mas a ela devo acrescentar uma recomendação comovedora de Febus Gikovate às vésperas de sua morte, num quarto do Hospital da Santa Casa, onde me disse com profunda convicção que eu deveria aderir ao novo partido, fazendo as mesmas observações de Mario Pedrosa e dizendo que ele próprio entraria se não estivesse perto do fim. Essas duas pressões de companheiros do antigo Partido Socialista foram fundamentais para a decisão que me levou à reunião fundadora do Colégio Sion em 10 de fevereiro de 1980. Nela, vi as aclamações de que foi objeto Mario, ao lado de outras figuras tutelares, como Lélia Abramo, Sérgio Buarque de Holanda, Apolonio de Carvalho, Manoel da Conceição. Talvez tenha sido a última vez que o vi, e creio que são estas as principais recordações que tenho dele.
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