Trecho extraído do livro CAOS: Crônicas Políticas (Brasiliense, 1982).
“Vamos lá: toquemos fogo nas prefeituras, nos quartéis e nos bancos, nos cartórios e nos registros, nas igrejas e hotéis, tomemos posse das casas luxuosas jogando pelas janelas todos os grandes burgueses e suas putas. Rapidamente tomemos de assalto as lojas onde estão víveres e as roupas; quebremos os telégrafos, os trilhos e outros meios de comunicação… As barricadas, a chuva de telhas e de água fervente: vamos jogar cacos de vidro, e pregos imenso (isso para a cavalaria), e pó-de-mico ou bombas de dinamite. (…) Cada um deve agir por sua própria iniciativa, quebrar e queimar onde houve um mal-feito e onde se poderá reparar uma injustiça passada: é preciso odiar muito, se se deseja amar muito no futuro. A revolução não deve ter chefes: se estes se apresentarem, devem ser para eles os primeiros tiros”.
Um trecho, mal traduzido, de um discurso de particular acento anarquista de Cohn-Bendit? Ou, talvez, de um manifesto distribuído em Versilia ou no Piemonte por algum grupo marxista-leninsta, mal egresso de um ginásio provinciano, onde ainda se ensina a escrever num italiano assim? [O texto original do texto citado por Pasolini está em italiano arcaico].
Não, de modo algum. Trata-se de um trecho (“que não é dos mais imoderados”, como diz o autor do livro que o cita: Pier Carlo Masini, Storie degli anarchici italiani, ed. Rizzoli) de Il pugnale, publicado em abril de 1889, em Paris. Os fundadores desse jornal eram Pini e Parmeggiani, dois anarquistas que fugiram para a França a fim de não serem presos pela polícia italiana (era a época do governo de Crispi: naquele momento, havia uma certa tensão entre a Itália e a França, com perigo de guerra etc.: os anarquistas lutavam pela solidariedade entre o povo francês e o italiano, unidos contra os respectivos governos etc.). Mas o significativo é que Pini e Parmeggiani não haviam cometido um crime ou delito contra o Estado, mas sim contra um outro anarquista, Ceretti, de Mirandola, que dirigia Il sole dell’avvenire. Tratava-se, portanto, de uma luta interna de correntes, em nome da “pureza”, da “intransigência anarquista”.
Mas – à parte essa analogia, inquietante e até mesmo angustiante, precisamente com certas atitudes de “pureza e intransigência” dos movimentos revolucionários “espontâneos” de hoje (analogia que demonstra quanto é antiga e enraizada a tradição italiana do “fascismo de esquerda”, fundada sobre a contradição-identificação entre indiferentismo e moralismo) – observemos alguns pontos do trecho transcrito.
“Jogar (…) pregos imensos (isso para a cavalaria) e pó-de-mico ou bombas de dinamite.” Temos aqui uma analogia, menos evidente, mas por isso mesmo mais significativa e surpreendente, com certas atitudes de hoje: ou seja, a mistura de sarcasmo e violência verbal direta: o primeiro, indefinível e insondável; a segunda, elementar e explícita. Há (ou houve) um cerimonial da violência estudantil: ou seja, a ironia leve (com um fundo terrorista, obscuro e um pouco sinistro) misturada com declarações diretas de intenção violenta. Isso cria confusão e ambiguidade, que é – diria – como um oratório de luta. Um modo para fugir; para não se comprometer e ganhar tempo; para avaliar as forças do adversário; para impedir sua maior capacidade de raciocínio. Em suma: para deixar uma margem de liberdade magmática, boa para todos os usos. Não há dúvida de que, nessa tática, misturam-se inseparavelmente truculência e ingenuidade.
Escolhi um trecho do livro de Masini capaz de oferecer analogias com as atitudes políticas “conscientes” da luta estudantil. Mas, na realidade, o que mais comove e espanta na história dos anarquistas são as referências a atitudes verdadeiramente espontâneas e naturais da juventude moderna. A anarquia em estado puro dos jovens que não querem nada com a vida: que não trabalham, não pensam no futuro, deixam-se transportar como pesos-mortos – no fundo, nem mesmo cultos, e, ao contrário, pertencentes a uma espécie de submundo cultural –, que tomam drogas etc.: que, em suma, preferem se perder a se integrar. O seu radicalismo inócuo e inerte talvez careça de vitalidade, no fundo também um pouco vulgar (sempre por causa da subcultura), de seus pais e avós anarquistas do final do século XIX e início do XX: todavia, a atitude deles – que não conhece compromisso ou escapatória, flexões ou debilidades, em face da “autoridade” e da “repressão” – é idêntica. E idênticos são os tipos de linguagem: naquele então, o marxismo não existia; hoje (neste caso concreto), é ignorado. É evidente que se trata de uma relação direta e inocente entre sistema e pertencente ao sistema, sem mediações. E, com efeito, os modelos de comportamento anarquista contemporâneos provém dos Estados Unidos, onde entre dissenso e autoridade não existe a mediação – portadora de nova consciência – do Partido Comunista.
Passou sem deixar marcas a contestação anarquista de um século, de setenta anos atrás? Ou seja: uma contestação ocorrida no momento em que o velho capitalismo era mais forte, era uma totalidade não ameaçada ainda seriamente por nada, e que tendia, por isso, a coincidir com a realidade em seu conjunto?
Não sei responder. Mas, se tal contestação não deixou marcas, uma coisa, porém, é certa: ela ressurge quase idêntica num momento em que o capitalismo atravessa um período de florescimento e de potência análogo ao anterior à organização dos partidos comunistas e da revolução comunista: e tende ainda, portanto, a se identificar com a realidade em seu conjunto. E, então, a resposta vem de seu próprio interior. É uma velha mecânica. Mas nós, que sabemos todas essas coisas, continuamos aqui – impotentes – a contemplar sua repetição.
Tempo, nº15, ano XXXI, 1º de fevereiro de 1969
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