O mês de março é especialmente simbólico para quem luta contra a opressão e acredita que a construção de um outro mundo é possível. É o mês de celebração das conquistas históricas dos movimentos feministas e de ratificação da luta das mulheres por igualdade de direitos. A cada ano, no dia 8 de março, milhões de mulheres realizam protestos, marchas e atividades diversas na incansável busca pela superação da opressão de gênero e pelo fim da violência machista.
Nesse mesmo mês, no dia 16, em uma centena de países, nos cinco continentes, estudantes, artistas, ativistas e grupos teatrais, em sua grande maioria formado por mulheres, celebram a obra e a memória de um brasileiro em particular: Augusto Boal, o teatrólogo que sistematizou o Teatro do Oprimido. A data de seu nascimento tornou-se o Dia Mundial do Teatro do Oprimido – um dos métodos teatrais mais praticados no mundo, que propõe a eliminação da fronteira entre palco e plateia para instauração de um diálogo horizontal entre artistas, espectadores e espectadoras, na análise da situação encenada e a busca de alternativas para o desfecho apresentado.
O Método representa o projeto mais impactante da carreira de Augusto Boal, que, por essa preciosa contribuição, foi indicado ao Nobel da Paz, em 2008, e nomeado em 27 de março de 2009, pela UNESCO, Embaixador Mundial do Teatro, na comemoração do Dia Mundial do Teatro. A honraria foi recebida pelo teatrólogo em Paris, na sede da instituição. Essa foi a última viagem internacional de Boal, que viria a falecer em 2 de maio do mesmo ano, no Rio de Janeiro. Por uma coincidência histórica, no mesmo dia que, doze anos antes (1997), morria o professor Paulo Freire, autor da Pedagogia do Oprimido e amigo de Augusto Boal.
O contexto histórico-social que produziu a trajetória de mais de cinco décadas do Teatro do Oprimido é fundamental para entender a essência revolucionária de sua proposta, a impressionante força de sua difusão internacional e os desafios que sua continuidade enfrenta.
Teatro engajado na luta de classes
Homem branco, filho de imigrantes portugueses, do ramo da panificação, Augusto Boal nasceu numa família de classe média, no bairro da Penha, subúrbio do Rio de Janeiro, em 1931. Durante a adolescência, conviveu cotidianamente com operários, que faziam da padaria de seus pais ponto de encontro antes de seguirem o caminho para o trabalho. As conversas matinais entre e com esses trabalhadores influenciaram a construção da percepção do jovem Boal sobre a realidade brasileira.
Como estudante de química, foi Diretor Cultural do Diretório Acadêmico, responsável pela promoção de eventos culturais. Graças ao cargo, teve a oportunidade de conhecer Nelson Rodrigues e ter vários de seus textos comentados pelo experiente diretor. Outra figura que teria uma influência significativa para Augusto Boal foi Abdias Nascimento, fundador do Teatro Experimental do Negro, com quem trabalhou e por meio de quem pôde conhecer pessoas e espaços de produção de cultura negra.
Boal estreou como diretor profissional no Teatro de Arena de São Paulo em 1956, mesmo ano da morte do poeta e dramaturgo Bertolt Brecht. Apesar de ter tido pouca experiência na produção de espetáculos de Brecht, Boal se declarava especialmente influenciado pelas reflexões e propostas do diretor alemão.
A trupe do Teatro de Arena criava histórias com uma visão crítica do contexto político, sendo seus protagonistas integrantes da classe trabalhadora. A encenação teatral tinha como objetivo romper com a relação tradicional entre palco e plateia, a qual entendiam estar limitada à condição de mera consumidora da mensagem oferecida no palco. Pretendiam estimular o público a analisar e a criticar a sociedade apresentada no palco e a pensar nas transformações necessárias na realidade.
Peças como Eles não usam black-tie (1958), de Gianfrancesco Guarnieri, Chapetuba Futebol Clube (1959), de Oduvaldo Vianna Filho, Fogo Frio (1960), de Benedito Ruy Barbosa, Revolução na América do Sul (1960), de Augusto Boal e o ciclo de musicais, Arena Conta Zumbi (1965), Arena Canta Bahia (1965), Arena Conta Tiradentes (1967), são exemplos da potência e do impacto transformador desse processo produtivo. O Teatro de Arena de São Paulo tornou-se referência nacional pela inovação no fazer teatral.
Foi com a montagem de A Exceção e A Regra, de Bertolt Brecht, que Boal trabalhou, pela primeira vez, com não-atores, no Sindicato dos Metalúrgicos do ABC Paulista, com um elenco composto exclusivamente por operários.
A experiência com o Teatro-Jornal em São Paulo, realizada pelo Núcleo 2 do Teatro de Arena, em 1971, que resultou na sistematização de técnicas variadas e na organização de dezenas de coletivos num ambiente de resistência cultural e política, é identificada por Augusto Boal como o marco de fundação do Teatro do Oprimido.
Ditadura, exílio e internacionalização do Método
Com exílio do teatrólogo, o Método se desenvolve, em outros países latino americanos, por meio de técnicas como Teatro-Imagem, Teatro-Invisível e Teatro-Fórum, que propõem a análise da estrutura social através de histórias particulares. Da primeira pessoa do singular avançar em direção à primeira pessoa do plural, para alcançar o contexto social e investigar alternativas de transformação. Criar uma trajetória de análise e de luta do micro em direção ao macro, a convicção de que problemas singulares estão vinculados a questões estruturais e, a partir disso, a superação dos desafios da vida cotidiana guardam interdependência com a transformação do sistema político.
Em consequência dos sucessivos golpes militares na América Latina, em 1976 o teatrólogo parte para a Europa: primeiro Portugal e depois França, onde funda o Centro de Teatro do Oprimido, CTO-Paris, em 1979. O Método avança no contexto europeu com as técnicas do Arco-íris do Desejo, nas quais as opressões internalizadas se tornam o núcleo da análise. Instaura-se a tendência a uma abordagem individualizada do conflito, que influencia a produção de cenas sobre os desafios pessoais sem considerar ou evidenciar aspectos estruturais.
O projeto do Teatro-Legislativo, iniciado em 1993, no Rio de Janeiro, por iniciativa do mandato do vereador Augusto Boal (eleito pelo PT, em 1992), se estabelece como tentativa de superação desse viés individualista que se tornou recorrente na prática do Método internacionalmente.
Em sua última década de vida, com a equipe do Centro de Teatro do Oprimido, do Rio de Janeiro, Augusto Boal desenvolve processos criativos que dão origem à Estética do Oprimido, título do livro lançado em 2009, meses depois de sua morte.
Apesar de possuir fundamentos teóricos que podem ser considerados feministas, o Teatro do Oprimido carecia de antídotos antipatriarcais eficientes. As estratégias patriarcais que naturalizam o machismo, sexismo e a violência machista, são difundidas e praticadas nos mais diversos espaços sociais, inclusive, em ambientes considerados progressistas e com perspectivas de esquerda. No mundo de praticantes do Teatro do Oprimido não era (e ainda não é) diferente, com o agravante de que a sofisticação dessas estratégias dificultava (e segue a dificultar) tanto a identificação quanto o combate às mesmas.
Nesse contexto, apesar das mulheres serem a maioria entre as pessoas oprimidas, constituíam a minoria absoluta entre facilitadores de processos de trabalho, lideranças de grupos e referências metodológicas. Além disso, era evidente a escassez de espaço para os temas considerados prioritários pelas mulheres e a insatisfação das mesmas com a abordagem de temas que lhes eram caros nas peças de Teatro-Fórum dirigidas por homens. Produções teatrais nas quais as oprimidas eram convertidas em vítimas do destino, responsáveis e culpadas pela injustiça que enfrentavam, e, frequentemente, convidadas a se justificar diante de seus opressores. Faltavam grupos de mulheres, facilitados por mulheres, que refletissem e pesquisassem formas de representar as opressões por elas vivenciadas.
Atualidade feminista do Teatro do Oprimido
Em 2010, no Brasil, iniciamos laboratórios teatrais cujo objetivo era investigar as especificidades das opressões enfrentadas pelas mulheres por serem mulheres. Buscamos formas de representação teatral que evitassem a culpabilização das oprimidas e que desenvolvessem uma abordagem contextual do problema. Essa iniciativa, batizada de Laboratório Madalena, foi multiplicada, entre 2010 e 2011, na Argentina, Uruguai, Guiné-Bissau, Moçambique, Alemanha, Portugal, Espanha (Catalunha e País Basco), Áustria e Índia com grupos de artistas-ativistas, em parceria com movimentos feministas, organizações de defesa dos direitos das mulheres e associações socioculturais. A rápida ampliação do processo de multiplicação deu origem à Rede Ma-g-dalena Internacional de Teatro das Oprimidas, composta por grupos feministas da América Latina, África e Europa.
Em nossa abordagem, a opressão deixa de ser entendida como fracasso particular da oprimida para ser trabalhada como consequência da injustiça social que, muitas vezes, independe das escolhas e dos comportamentos da mesma. Por isso, não nos perguntamos o que a oprimida poderia ter feito de diferente individualmente para evitar ou para resolver o problema que enfrenta. Nos perguntamos coletivamente que estratégias podemos inventar, desenvolver e usar desde nossos distintos lugares/condições sociais em relação ao problema analisado, para atacar ou fragilizar os mecanismos de funcionamento da opressão ali implicados.
Certa vez, quando questionado se faria uma peça feminista, Augusto Boal teria respondido que não. O teatrólogo, pessoa ciente de seu lugar social no mundo, dos privilégios e das limitações que este lhe impunha, teria dito que ao seu alcance estaria na possibilidade de fazer peças antimachistas e antipatriarcais, mas que peça feministas deveriam ser tarefa para dramaturgas feministas.
Descobrir-se feminista é um processo árduo, lento, que precisa de espaço e tempo. Especialmente para mulheres que estiveram por décadas entupidas pelo lixo antifeminista largamente disseminado na sociedade, com o objetivo de ocultar, confundir e escamotear a necessidade óbvia de uma atitude feminista diante de tamanha injustiça de gênero.
Nesse sentido, o Teatro das Oprimidas nasceu de um feminismo intuitivo, desfocado, genérico, sem suporte teórico evidente. Processo que foi sendo construído por meio da própria construção de uma perspectiva feminista na vida das pessoas que o construíam como alternativa concreta. O Teatro das Oprimidas surgiu da necessidade e do desejo de ampliar as possibilidades de atuação, da consciência concreta de olhar para os lados e ver corpos masculinos brancos ocupando quase todos os espaços de visibilidade, de prestígio e de poder.
O Teatro das Oprimidas surgiu como resultado da urgência em desenvolver processos de representação teatral que não culpabilizassem as mulheres, nem individualizassem a encenação dos conflitos que as desafiam. O Teatro das Oprimidas é um processo estético investigativo que valoriza a perspectiva subjetiva dos problemas para explicitar a complexidade das personagens e das situações vividas por estas e, ao mesmo tempo, prioriza a contextualização do problema para revelar os mecanismos de opressão.
Trata-se de uma metodologia de trabalho que surgiu de dentro de uma outra metodologia de trabalho para aprofundá-la, ampliá-la e também para questioná-la. No Teatro das Oprimidas não problematizamos apenas a singularidade e a masculinidade “do Oprimido”, buscamos superar o individualismo da abordagem cênica, evitar a responsabilização da protagonista pelas opressões que enfrenta e considerar a estrutura social que limita (e muitas vezes impede) escolhas pessoais. Nos concentramos na compreensão dos mecanismos de opressão e não no comportamento de cada personagem dentro da encenação, apesar de valorizar cada subjetividade. Trabalhamos para desenvolver uma Estética das Oprimidas e avançar para estabelecer Estéticas Feministas.
A experiência dessa última década está registrada no livro “TEATRO DAS OPRIMIDAS: estéticas feministas para poéticas políticas”, lançado na FLIP, em Paraty, em 2019 e, sua versão em espanhol, em Buenos Aires, em 2020. A publicação oferece exemplos concretos e instrumentos eficazes para a reflexão crítica, a produção artística para intervenções sociais e a atuação política articulada em redes. Um livro para todas as pessoas interessadas na superação do patriarcado.
Nesse mundo de retrocessos políticos promovidos por uma extrema direita populista, fascista, machista, arrogante, ignorante, hetoronormativa e hipócrita, que prolifera propostas de ódio para estabelecer uma supremacia branca e masculina, as feministas voltam ao topo da lista como inimigas. Mas, por toda parte, são elas, somos nós, as feministas, que estão, que estamos, nos diversos fronts de lutas mostrando que a revolução só pode ser feminista.
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