Resenha do livro O homem que estava lá, de Karla Monteiro (Companhia das Letras, 2020).
Próximo aos comunistas, financiado pelos empresários; preso e exilado por Getúlio Vargas, a quem resgatou para a política numa entrevista. Amigo cordial e inimigo mortal de Carlos Lacerda. Esta vida de contradições, em meio a turbilhões na política, no jornalismo e no relacionamento familiar, esconde um obstinado que desde cedo e até o último de seus dias batalhou por um mesmo objetivo: ser o instrumento de um jornalismo nacionalista que desse voz ao direito dos trabalhadores. Samuel Wainer era o “Homem que estava lá” na recente e bem construída biografia da jornalista Karla Monteiro, que paralelamente nos brinda com cinquenta anos da história de um país que passou por quase tudo, mas não aprendeu praticamente nada.
Lá, no caso, foram muitos lugares.
Foram nos pequenos jornais da comunidade judaica em que extravasou sua visão sionista social-democrata; foram as revistas que o ensinaram a cozinha de uma redação, em especial Diretrizes, na qual chefiou toda uma geração de intelectuais. Lá foram também os jornais, com os quais ganhou intimidade com o matraquear das máquinas de escrever, a sinfonia dos telefones e a fumaça dos cigarros. O Diário de Notícias, O Jornal, de Assis Chateaubriand e, sobretudo, seu mítico Última Hora, com o qual estabeleceu a relação conjugal mais duradoura – e cuja dedicação acabou por atrapalhar todas as demais.
Aventureiro e andarilho, esteve em muitos outros lugares nas companhias mais marcantes. Cobriu o julgamento de Nuremberg e assistiu ao nascimento do Estado de Israel. Esteve com Salvador Allende e Pablo Neruda no Chile, e aprendeu a ser produtor de cinema com Louis Malle em Paris. Privou da intimidade dos palácios cultivando a amizade com três presidentes da República: Getúlio Vargas, Juscelino Kubitscheck e Jango Goulart – por intermédio dos quais realizou seus sonhos e por eles padeceu de uma montanha de pesadelos.
Trabalhismo radical
Karla não o canoniza, nem o absolve. Pelas mais de quinhentas páginas do livro, somos apresentados a suas esperanças, suas lutas e seus sofrimentos dos quais nos tornamos solidários, quando não cúmplices; mas também a uma parte considerável de seus vícios. Foi acusado por corrupção, condenado por mentir sobre suas origens e, enfim, de fazer um jornal pelego. Mas na autópsia de seus tumores é que se encontram as mazelas cruciais da grande imprensa brasileira, que, de uma forma incrivelmente assustadora, ainda são possíveis reconhecer até os dias de hoje. Samuel Wainer, enfim, merecia uma biografia como essa.
Ele viveu intensamente como um brasileiro, mas nasceu na Bessarábia, na região em que hoje se situa a Moldávia. Instalou-se com a família no bairro do Bom Retiro, em São Paulo, tradicional refúgio da comunidade judaica, que chegava ao país na primeira metade do século XX. Feito o ensino fundamental, mudou-se para o Rio de Janeiro, onde foi morar nas proximidades da Praça Onze, como narra Karla, praticamente um shtetl tropical. Em 1930, estreou como colunista do Club Juventude Israelita. Altamente politizado, tomou parte dos movimentos sionistas de esquerda, até despertar para o nacionalismo trabalhista, que perseguiria desde então. Seus adversários nunca souberam distingui-lo o suficiente e passaram a vida lhe atribuindo a condição de comunista, a que jamais aderiu. “Eu tinha declaradas simpatias pela esquerda, mas nunca fui bem assimilado pelo Partido Comunista, tampouco cheguei a afinar-me com sua ideologia”, dizia ele. Nada disso, no entanto, lhe privou de ouvir, vez por outra, “Vai pra Rússia!” da boca de seus desafetos.
Curiosamente, era Carlos Frederico Lacerda quem fazia parte da Juventude Comunista em 1934, quando então era um ícone para o judeu pobretão ainda insulado nas muralhas da comunidade. Carlos de Marx; Frederico, de Engels – repetia Lacerda, com orgulho. Viriam gozar de uma forte amizade nos tempos da revista Diretrizes, que Samuel lançou em sociedade com um notório conservador, mas portador de um importante bilhete premiado, o patrocínio da canadense Light, que era meio dona de tudo na época. Com este dinheiro, e os comunistas que traria da finada Revista Acadêmica, Samuel se prontificou a fazer a melhor publicação que o Brasil tivera. Bons colaboradores não lhe faltavam: Jorge Amado, Rubem Braga, Graciliano Ramos, Mário de Andrade, Carlos Drummond, Érico Veríssimo, Rachel de Queiroz, Joel Silveira, Carlos Scliar, José Lins do Rego e, entre vários outros, Nelson Rodrigues, que lhe acompanharia depois no Última Hora, com a mais famosa coluna da imprensa brasileira, “A vida como ela é…”.
Antigo perseguido, futuro cabo eleitoral
No Estado Novo, sofreu censura, prisão e, por fim, exílio. Seria inimaginável que Getúlio voltasse ao poder com sua ajuda. Mas foi exatamente isso que aconteceu. Em um episódio, que a própria autora reputa como de origem controversa, Samuel teria parado, por um insight e de surpresa, na fazenda gaúcha em que se encontrava Getúlio, aposentado da política, depois que fora apeado do poder. Sua entrevista, para o jornal de Chatô transformou-se num sucesso de público e recolocou Getúlio no teatro das eleições: voltarei como líder das massas, não de um partido – o vaticínio de 1949 realizou-se. Samuel que o instara a assumir uma candidatura e foi o primeiro a apostar suas fichas na vitória seria apelidado pelo futuro presidente de “profeta”.
Samuel não era apenas o jornalista mais íntimo que cobria a campanha de Getúlio; era praticamente o único. Por mais comoção pública que gerasse, o ex-caudilho não era assunto na grande mídia, que fazia campanha não assumida, mas muito pouco disfarçada, pelo candidato da União Democrática Nacional (UDN), Brigadeiro Eduardo Gomes. Os jornais podiam não ajudar a ganhar a eleição, dizia Samuel, mas certamente ajudavam a perder: “O senhor só vai aparecer nos jornais quando houver algo negativo; é uma tática normal de oposição e a mais destrutiva”. A resposta de Getúlio em forma de pergunta, depois da eleição, provocaria um vendaval na mídia: por que tu não fazes um jornal?
Karla não é econômica em desvelar a intimidade que acompanhou Getúlio, Samuel e o Última Hora. Deixa clara a importância do dinheiro que o municiou como produto desta relação – em especial o generoso aporte de pessoa física e jurídica do então presidente do Banco do Brasil, Ricardo Jafet. E não esconde que o jornal fora assumidamente getulista, conquanto se abrisse a críticas a certos setores do governo, como foi o caso do ministro do Trabalho, Segadas Viana, que endureceu com grevistas e acabou sendo substituído por Jango, após críticas do Última Hora. Karla registra a presença de Samuel com frequência no Palácio do Catete e, ao mesmo tempo, o interesse de Getúlio em dar palpite em diversas matérias, até nos pequenos detalhes. Mas a última e mais expressiva sugestão, foi a manchete do jornal que por intermédio do filho transmitiu a Samuel na véspera do suicídio: “Só morto sairei do Catete”. No dia seguinte, Última Hora a repetiu, acrescentando uma linha: “O presidente cumpriu a palavra”.
Condenado por suas virtudes, não pelos vícios
Mas o que as críticas ao comportamento de Samuel Wainer revelam é justamente o que nelas se esconde. Que ele foi mais condenado por suas virtudes do que propriamente pelos vícios, que eram amplamente disseminados, e ao mesmo tempo acobertados, nos outros órgãos de imprensa. Isso vai ficar mais claro na campanha que é movida a princípio por Carlos Lacerda, mas encorpada por todos os donos de grandes jornais, expondo os financiamentos públicos que deram vida ao Última Hora. Quantos destes acusadores não haviam nascido e crescido de forma absolutamente similar? Roberto Marinho trazia uma dívida milionária com o Banco do Brasil, usando a mesma impressora como caução para cinco empréstimos – mais tarde seria investigado pela sociedade, então proibida, com uma empresa estrangeira, a norte-americana Time-Life; Assis Chateaubriand tinha no armário um esqueleto ainda maior de subsídios do Estado Novo, além de uma dívida de mais de 700 milhões de cruzeiros na praça.
Samuel tampouco inventou o “jornal com lado”, instrumento de uma posição política e ideológica; apenas o assumiu sem a hipocrisia que marcava os baluartes da grande imprensa, em campanhas em geral sub-reptícias e, no mais das vezes, coletivas. À oligarquia da mídia, não revoltou propriamente sua imersão na política; mas o caráter de intruso de Samuel, desassociado de famílias tradicionais, de grandes grupos financeiros, e próximo demais de Getúlio (o inimigo a ser derrubado). Ademais, a defesa do ponto de vista dos trabalhadores sempre foi artigo raríssimo neste seleto clube.
Samuel foi triturado por uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), emulada pelo novo inimigo Carlos Lacerda, a quem todos os palanques foram entregues, e a um conjunto de parlamentares conservadores que, ao mesmo tempo, submergiram para ocultar acusações aos demais jornais que, de forma impulsiva, corajosa, mas absolutamente imprudente, Samuel fizera como mecanismo de defesa. Enquanto uma CPI se transformou em novela das oito, a indignação seletiva impediu que a outra nascesse.
Pseudo-moralismo golpista
Nada nos traz de volta tão intensamente aos tempos modernos do que a trajetória de Carlos Lacerda, misto da propalada integridade do acusador de um Sérgio Moro e da virulência mentirosa e destrutiva do bolsonarismo. E, como apontava Nelson Rodrigues, transformado rapidamente numa unanimidade nacional. Lacerda havia sido alijado da Diretrizes e dos círculos intelectuais que a suportavam depois de um artigo que escreveu para outra revista, com detalhes incômodos sobre o Partido Comunista do Brasil (PCB). Segundo sua própria versão, aceitou fazê-lo apenas para reduzir danos e evitar que a visão de um reacionário causasse maiores problemas. Mas o tempo ia se encarregar de provar que o arrivismo de que fora acusado estava mais do que demonstrado. O ressentimento e o oportunismo, aliados a contundência e a oratória, temperados por uma ambição desenfreada, iriam fazer de Lacerda o algoz de Samuel em 1953 e, enfim, de Getúlio, em 1954.
Lacerda teve o mérito de apostar na luta pela moralidade pública, especialmente para ganhar o apreço da classe média, que saudaria o fato de que “pela primeira vez, ricos e poderosos seriam convocados a dar explicações de uso do dinheiro público” – embora fossem apenas alguns ricos e poucos poderosos escolhidos pelo novo candidato a salvador da pátria. De todo o modo, nas portas do Palácio Tiradentes, uma multidão se aglomerava a cada uma das audiências públicas. E como isso ainda fosse pouco, Chatô franqueou a Lacerda as câmeras da TV Tupi; Roberto Marinho, o microfone da Rádio Globo.
Em Casei com um comunista (1998), o romancista Philip Roth explica muito bem a dinâmica e importância das CPIs para o macarthismo, que nessa mesma época entusiasmava os Estados Unidos: “McCarthy compreendeu o valor de entretenimento da desgraça e aprendeu como alimentar as delícias da paranoia.”
A CPI do Última Hora desaguou em cobranças antecipadas de dívidas pelo Banco do Brasil e uma sensação a Samuel de abandono por Getúlio Vargas. De outro lado, a lealdade lhe custara uma nova temporada na prisão, pela recusa em entregar os “homens da capa preta”, seus primeiros financiadores – prisão esta que fora reclamada pelo deputado Armando Falcão (PSD), que anos mais tarde seria o Ministro da Justiça do general Geisel e daria nome à lei da mordaça da propaganda eleitoral.
Em grande medida, por essas contradições com que a vida nos surpreende, Samuel se salvou, justamente porque Getúlio se mata. Ao invés de ter de fugir com a esperada deposição do presidente, foi saudado pelo povo quase como um herói por sua defesa intransigente de Getúlio, que saíra da vida para entrar para a história e atrasar o golpe militar em uma década. Em 1954, quem fugiu pela porta dos fundos e se escondeu num navio militar, com medo da reação popular, foi Carlos Lacerda, imortalizado no apelido e na figura de Corvo, depois de uma caricatura que o italiano Lan desenhara nas páginas do Última Hora. Mas ele ainda voltaria para se eleger governador do Rio, estimular outro golpe e, ao final, ser alijado pela ditadura.
O fim do império trabalhista e da democracia
Samuel não tivera com Jango a mesma reverência que manteve com Getúlio, tanto que discorria a portas fechadas sobre sua incapacidade de contornar a crise que se avolumara: sem disposição para se afastar dos que eram tidos por radicais, nem força para resistir e se impor.
Por isso, conta Karla, Samuel tratou de negociar o exílio no Chile, antes mesmo do fatídico primeiro de abril e nos dias que sucederam o golpe buscou administrar a queda de seu império, que ruía literalmente com o fechamento e a destruição das sucursais do Última Hora pelo país, violência retratada em uma antológica charge de Jaguar, estampando “gorilas” arrebentando a redação e pulando sobre uma máquina de escrever.
Enquanto isso, a grande imprensa que lhe crucificara estendia o tapete vermelho aos milicos que, em breve, lhes calariam. Correio da Manhã e O Estado de S. Paulo decretavam entusiasmados, a “vitória da revolução”. O Jornal, de Assis Chateaubriand, louvava os “verdadeiros princípios cristãos e democráticos“. A Folha de S. Paulo aplaudia “o espírito da legalidade, restabelecido o princípio da Constituição e do Direito”.
Legado incontornável
Mas o arrojo de Última Hora não passou em branco no jornalismo. Samuel levou cor para a capa do jornal, no seu logotipo azul, além de alarde às manchetes de duas palavras. Trouxe temas populares em destaque, inclusive o futebol. Apostou na dinamização da entrega dos jornais nas bancas. Mas seu principal legado, do que se deduz das minuciosas descrições de Karla Monteiro, foram as colunas assinadas, com autores de peso: Vinícius de Moraes, por exemplo, escrevia sobre cinema; Marques Rebelo, sobre teatro; Otto Lara Resende tinha uma coluna de humor. Dorival Caymmi, Paulo Francis, Ignacio de Loyola Brandão, Tarso de Castro e tantos outros em colunas que se tornaram identidades culturais. Alguns nomes que viriam a embalar movimentos, como a de Ricardo Amaral, chamada “Jovem Guarda” e a de Torquato Neto, “Geléia Geral”.
Grandes nomes do jornalismo como Alberto Dines, Jânio de Freitas, Washington Novaes e Jorge da Cunha Lima também bateram ponto na redação do Última Hora. Com um relato cuidadoso, Karla descreve dois pontos altos da reportagem do jornal: o acompanhamento de uma quadrilha de jovens bem-nascidos praticantes de estupros coletivos no Rio – prática que ficaria célebre depois da morte de Aida Curi; e uma inesquecível entrevista fake de Mario Prata com Julinho da Adelaide, personagem com qual Chico Buarque buscava desviar da censura.
Foi como colunista da célebre página dois da Folha de S. Paulo que Samuel Wainer encerrou seus trabalhos, convidado por Cláudio Abramo, após uma aproximação realizada por Eduardo Suplicy. Numa de suas últimas colunas, apontava a ingenuidade do governo militar que encarcerara o líder das greves do ABC, como forma de conter a contrariedade ao regime: “Se prender Lula e destruí-lo politicamente bastasse, estaria tudo bem para os que ainda não descobriram que, contrariando o saudoso presidente Washington Luís, a questão social não é mais um caso de polícia”.
Como as contradições que lhe cercam, o Última Hora também revolucionou o salário dos jornalistas, contratados a peso de ouro, granjeando antipatias dos concorrentes ao inflacionar o mercado. Mas o espírito aventureiro do proprietário não permitiu que os salários fossem pagos sempre em dia. Mais de uma vez, descreve Karla, se viu obrigado a usar produtos eletrodomésticos que recebera de um comerciante, para reduzir os danos das inadimplências – causando repulsa em vários jornalistas.
Se a vida profissional foi uma verdadeira montanha-russa, a vida pessoal da Samuel não foi lá muito diferente. Ninguém foi mais importante do que o jornal, onde realmente se sentia em casa. Foi abandonando e sendo abandonado pelas esposas, vivendo a noite entre celebridades e as rotativas, ainda que sob o uso frequente de anfetaminas. Foi fazendo amizades e contatos e negócios por onde quer que passasse – mas também desafetos. Poucos eram indiferentes à sua presença.
Bluma Chafir, a primeira esposa, engravidou do amigo Rubem Braga. Danuza Leão separou-se para viver com Antônio Maria, seu próprio colunista. Não guardou rancor de quem lhe feriu, com uma única exceção. Refutou enfaticamente a possibilidade de apertar a mão de Carlos Lacerda e acompanhar-lhe na Frente Ampla, quando os sonhos de candidatura presidencial do Corvo foram arquivados pela ditadura. Opôs-se a Juscelino e mais ruidosamente a Jango, este de forma pública: “Hoje aperta suas mãos no exílio, amanhã aponta você como inimigo da Pátria, Deus e Família”. Jamais desculpou o assassino de Getúlio.
Seria um bom epílogo dizer que depois de Samuel Wainer, a imprensa brasileira nunca mais foi a mesma. Mas para quem acompanhou o apoio aberto à deposição de uma presidente eleita, a recriação do combate midiático à corrupção pelo acusador com pés de barro, e o silêncio cúmplice à nostalgia autoritária, isso não passaria de outra bela fake news.
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