Maria da Conceição Tavares, em uma participação no programa Roda Vida, foi questionada: “o que a senhora acha sobre a proposta da independência do Banco Central?” Tavares foi categórica na resposta, devolvendo a pergunta: “independente de quem?”
Não há nada de trivial na pergunta. O espinhoso debate que ela exige, já bastante antigo entre os economistas, hoje volta à ordem do dia da política, uma vez que essa semana a Câmara dos Deputados terá que decidir sobre a proposta – já aprovada no Senado Federal – de autonomia do Banco Central do Brasil (BC).
Autonomia e independência são, a princípio, temas distintos, é bem verdade. No entanto, o projeto em curso, se sustenta nas mesmas premissas da ideia de independência, apenas mantém sob o Conselho Monetário Nacional (CMN) o poder de seguir fixando a meta de inflação. Assim, o BC teria autonomia na condução da política econômica, ainda que se mantenha submetido à definição pregressa do Conselho, que segue com seus representantes indicados pelo governo federal.
A proposta de autonomia hoje em curso caminha, pari passu, com a perspectiva que embasa os preceitos da independência: separar o ciclo da Política Institucional –celebrado pelo mandato do presidente da República – e o ciclo da condução da Autoridade Monetária – selado pelo mandato do presidente e dos diretores do BC.
Na proposta que tramita agora, o presidente da República seguirá indicando o nome do presidente e dos diretores do BC. No entanto, esses escolhidos iniciarão o seu mandato apenas no último ano da gestão do presidente. Além de não coincidentes, os mandatos serão de 4 anos, impossibilitada a exoneração por motivos que digam respeito ao espectro da política.
A falsa preservação do valor monetário
São várias alegações apresentadas para justificar a desejada divergência entre os ciclos. A mais popular baseia-se na afirmação – superficial e questionável, para dizer o mínimo – de que haveria uma correlação positiva entre países que adotam o sistema de BC independente e a preservação do valor das suas respectivas moedas. Essa seria a medida empírica eleita como validação de que BCs independentes – isto é, independentes da política, pois supostamente guiados apenas por critérios “técnicos” – seriam mais eficientes no controle da moeda e na manutenção dos níveis de inflação.
Essa “correlação” não leva em consideração elementos cruciais como a hierarquia entre moedas no sistema monetário internacional e as próprias condições estruturais das nações periféricas, que não detêm moedas conversíveis. Abstrai, como por um passo de mágica, as relações de poder entre as nações e suas posições relativas no sistema econômico mundial.
O que explica a correlação entre países subdesenvolvidos e maiores taxas de inflação não é tanto a condução da Autoridade Monetária, e sim muito mais um elemento estrutural: países subdesenvolvidos são, frequentemente, atingidos por uma inflação de custos, ligados a problemas crônicos de balanço de pagamento sofrido por nações detentoras de moedas “fracas”. Já os países desenvolvidos, principalmente os EUA, exemplo paradigmático de “independência” e condução técnica da condução monetária, apresentariam níveis de inflação menos elevadas, principalmente ligados à inflação de demanda. A correlação falha ao não levar em conta elementos centrais para a avaliação macroeconômica, tais como a história, as condições estruturais e o lugar ocupado por distintos países na rígida linha que aparta desenvolvidos e subdesenvolvidos.
A prova cabal da frágil correlação é a própria conjuntura brasileira. Atualmente o país está com o acumulado da inflação de 2020 levemente acima da meta, tendo passado praticamente metade do ano com o agregado perfazendo um percentual abaixo até da meta de inflação, quem dirá do topo da meta, o que caracterizaria uma escalada inflacionária. Dessa forma, estamos vivenciando um dos períodos de maior estabilidade da moeda mesmo com o BC não gozando de autonomia/independência, o que coloca por terra a correlação entre BCs independentes e maior estabilidade da moeda. Ou seja, o nível de inflação depende de diversas outras variáveis que não unicamente o preço do dinheiro ou a taxa de juros.
Pseudo blindagem política
Outra linha de argumentação levantada a favor da proposta baseia-se na percepção de que a independência do BC contribuiria para que os diretores do banco ficassem “blindados” da coerção política do do Executivo Federal. Sem mandatos fixos, os diretores poderiam ser facilmente exonerados dos seus cargos, tornando suas decisões, portanto, mais vulneráveis a pressões política (e até “politiqueiras”). Para os defensores da independência do BC, se os diretores são eleitos pelos políticos eles ficam submetidos aos seus interesses eleitorais, como por exemplo adotar uma política de redução do desemprego, mas “fiscalmente irresponsável”.
Essa discussão também não é nova. É um componente da tendência liberalizante hegemônica no país desde fins dos anos 1980, que propagandeia que o poder político é por excelência uma esfera do profano e do corrupto, cuja consequência só pode ser um Estado perdulário e artificialmente inchado. Em contrapartida, o mercado representa o sagrado e incorruptível, encarnação da racionalidade e da eficiência. Dessa forma, quanto mais as decisões de política econômica são relegadas aos “técnicos” em detrimento dos políticos, mais ela seria exercida em conformidade com as leis naturais da economia. A conclusão é que os interesses da população brasileira seriam melhor atendidos quanto mais pudéssemos isolar a economia da política, passando ao largo das pressões democráticas e levando em consideração apenas critérios puramente “técnicos” e ideologicamente “neutros”.
Ocorre que não existe nada em política econômica que seja “neutro”, puramente “técnico” ou que represente o “bem comum” para todos os brasileiros. A verdade óbvia é que vivemos em uma sociedade capitalista e, portanto, como qualquer um pode perceber, dividida em classes sociais. Por mais que as classes proprietárias queiram identificar os seus próprios interesses particulares com o interesse geral – e gastem uma vasta quantidade de dinheiro para nos convencer disso – simplesmente não é o caso que o que satisfaz os desejos “do mercado” seja o melhor para todos. Em uma sociedade dividida em classes, é sempre o caso que o conjunto das opções de política econômica colocarão em oposição interesses diversos, componentes do conflito distributivo que está no cerne da luta de classes. Nem a política econômica nem a própria moeda são neutras, ao contrário do que advogam os liberais.
A política monetária é uma das principais ferramentas da política econômica. É o instrumento que define uma das variáveis mais importantes para a atividade econômica, do emprego à inflação com a taxa de juros.
Mais que isso, o BC – como um instrumento submetido à política – é um dos pilares da soberania nacional, na medida em que controla preços macroeconômicos fundamentais. O desenvolvimento econômico, tal como concebido por Celso Furtado e outros desenvolvimentistas clássicos, é um processo de mudança estrutural e que não pode prescindir do controle do Estado – mediante o mandato delegado pela sociedade nas urnas – dos instrumentos macroeconômicos que subordinam a política econômica aos anseios populares. A independência do BC, dessa feita, insere-se em um processo de esvaziamento das funções do Estado Nacional, que já teve no câmbio flutuante e no Teto de Gastos restrições fundamentais, da política cambial e fiscal brasileira.
Os perigos da “independência”
Um BC “independente” bem poderia operar uma política de elevação dos juros em meio a uma recessão econômica por critérios ditos “técnicos”, em contrariedade a uma proposta política vitoriosa no voto popular que tivesse como sustentáculo a elevação do investimento e do consumo. Mas quem o povo pensa que é para opinar sobre os rumos da vida econômica? “Dinheiro democrático é dinheiro ruim”, vão dizer os liberais, convencidos que as decisões monetárias são importantes demais para serem deixadas na mão de um populacho ignorante e seus políticos oportunistas. Afinal, o Estado deve servir ao mercado, e não o contrário. Está claro a que classe essa “neutra” sabedoria serve.
Afinal, não existe espaço vazio na política. Se o BC for independente do Estado, será dependente de algum outro grupo social. Historicamente, observa-se que os BCs dito “independentes” são facilmente capturáveis pelos interesses do setor financeiro, tornando-se na prática um comitê executivo para gerir os negócios comuns da banca.
No Brasil, por exemplo, quem regula a concorrência interbancária é o BC, e não o CADE. Assim, se o BC for capturado pelos interesses do setor financeiro, dificilmente terá como operar uma política de ampliação da concorrência interbancária ou redução dos spreads, por exemplo. É a famosa raposa cuidando do galinheiro. O BC funciona como uma agência que regula os demais bancos, oferta crédito, fiscaliza e também intervém. Ou seja, precisa sim de certa independência, mas independência com relação aos seus “fiscalizados”. É essa verdadeira independência que poderia trazer benefícios tanto ao desenvolvimento nacional quanto à situação material dos que ganham a vida trabalhando. Se há uma dependência a ser combatida, é a dependência da política econômica – incluindo a política monetária – em relação aos interesses corporativos, sua submissão ao poder do mercado e da classe que vive de renda.
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