Embora os Estados Unidos possuam um histórico notório de intervenções nas Américas, o envolvimento britânico na região permanece relativamente desconhecido, com sua política externa imune ao escrutínio público. Documentos recém-desclassificados dos Arquivos Nacionais do Reino Unido, entretanto, lançaram uma luz importante sobre a Guerra Fria da Grã-Bretanha contra a América Latina.
Apesar da perda considerável de comércio e influência da Grã-Bretanha na América Latina durante o século XX, a intervenção britânica durante o pós-guerra foi significativa. Entre as décadas de 1950 e 1970, a Grã-Bretanha interviu secretamente em diversos estados latino-americanos, com o objetivo de promover interesses comerciais e empresariais britânicos, apoiar os objetivos da política externa norte-americana e manter a região no “lado certo” da Guerra Fria.
Na prática, isso significou interferir em eleições e instituições democráticas, fornecer treinamento para a prática de tortura, patrocinar jornalistas e apoiar ditaduras militares.
Ofensiva de publicidade secreta
Em 1948, uma unidade secreta de propaganda – inocentemente chamada de Departamento de Pesquisa de Informações (DPI) – foi criada no Ministério das Relações Exteriores. De acordo com os primeiros documentos, o Departamento foi projetado para distribuir propaganda disfarçada, não atribuível ao Ministério, para “conter os avanços do comunismo, tomando a ofensiva contra o movimento”.
O trabalho do DPI na América Latina começou logo após sua criação, mas foi somente na década de 1960 que suas operações secretas “aumentaram consideravelmente” na região. A mudança foi motivada pela visita do diplomata Ronnie Burroughs em 1961 que, segundo o historiador Rory Cormac, nomeou Equador, Bolívia, Venezuela, Colômbia e Peru como prioridades estratégicas.
Três anos após a visita de Burroughs, um arquivo do Ministério apontava, novamente, que a América Latina havia se tornado “uma área vital na Guerra Fria” e que “impedir uma vitória comunista da região era um interesse tão importante quanto negociar comercialização e intensificação das exportações”.
Pare Allende
Conforme revelou o Desclassified UK, documentos oficiais recém-divulgados mostram que a Grã-Bretanha interferiu secretamente nas eleições presidenciais chilenas de 1964 e 1970.
Durante o início da década de 1960, o Chile entrou no radar do DPI com a ascensão da popularidade de Salvador Allende, um político socialista e líder da Frente de Acción Popular (Frente de Ação Popular).
Antes da eleição chilena de 1964, funcionários do Gabinete do Governo da Grã-Bretanha informaram ao DPI que “será importante prevenir ganhos significativos da extrema-esquerda” no Chile, “agora e no futuro”. Como tal, o DPI distribuiu seu “material mais sério para contatos confiáveis” e garantiu “a publicação de certos artigos na imprensa” no Chile, destinados a desacreditar Allende e favorecer seu então oponente democrata-cristão, Eduardo Frei.
Após a vitória convincente de Frei, a oficial sênior do DPI, Elizabeth Allot, declarou o Chile como uma prioridade, observando que “certamente há poucos locais que reivindicam melhor nossos recursos e onde há tanta oportunidade para nós”.
Em 1970, Allende – então líder da coalizão Unidade Popular do Chile – parecia provável de ganhar a presidência com um plano radical para uma reforma econômica estrutural. Os planejadores do DPI reagiram com preocupação, afirmando em 1969 que “o Chile está na linha de frente no que diz respeito ao avanço do comunismo na América do Sul”.
Nos meses que antecederam a eleição, Allott escreveu que o DPI estava, portanto, “concentrando-se em evitar que uma aliança da extrema-esquerda ganhasse poder […] e em ajudar organizações convenientes que provavelmente continuarão existindo, aconteça o que acontecer”.
A Grã-Bretanha também colaborou com a infame campanha de propaganda norte-americana no Chile, até mesmo auxiliando uma organização de imprensa fundada pela CIA que visitou o país em 1970. Depois que Allende foi derrubado por um golpe militar em 1973, o governo de Edward Heath agiu rapidamente para reconhecer o general Augusto Pinochet – uma relação fechada que foi notoriamente reacendida por Margaret Thatcher.
A Grã-Bretanha e a ditadura militar brasileira
Documentos recém descobertos também expõem as operações do DPI no Brasil durante a ditadura militar no país (1964-1985) e forneceram detalhes adicionais do treinamento britânico sobre tortura.
Além de trabalhar para manter as Forças Armadas brasileiras “informadas sobre as políticas e métodos comunistas, com o objetivo de tornar sua oposição ao comunismo mais racional e bem informada”, as autoridades britânicas tentaram moldar o panorama da mídia brasileira e até discutiram em transformar o presidente João Goulart em um alvo.
Assim, como Cormac descobriu, autoridades britânicas queriam fazer o presidente “temer que sua posição pessoal com o movimento sindical estivesse sendo minada. Isso poderia ser melhor feito sugerindo que o movimento estava sendo assumido por comunistas e pela extrema-esquerda ‘por meio de um’ documento ‘negro’ que tentaria provar que esse era o caso”.
Publicitários britânicos também tinham como alvo o Última Hora, um jornal brasileiro convencional e de esquerda fundado em 1951 pelo jornalista e autor Samuel Wainer. Em 1964, Última Hora era o único jornal brasileiro convencional a defender o governo de João Gourlart e se opor ao golpe militar.
Tentativas de influenciar o Última Hora começaram em seis meses antes do golpe. Em uma carta enviada do embaixador britânico RJD Evans ao funcionário do IRD JE Jackson, datada de 30 de setembro de 1964, Evans discute “acordos não oficiais” para reuniões do IRD com “os diretores do Jornal do Brasil e um vice-presidente e editor do Última Hora’.
Em 1968, autoridades britânicas no Brasil se gabavam de que o “estímulo” ao Última Hora já era um fato consumado. Como diz um arquivo do IRD: “Nosso material vai para altos membros das Forças Armadas, o Serviço Nacional de Inteligência, a imprensa incluindo o Última Hora de esquerda, cujo editor, Samuel Wainer, foi cultivado assiduamente pelo [oficial de informação] Sr. Welligton; a igreja, estudantes e líderes sindicais”.
Oficiais britânicos estavam triunfantes. “A transformação do Última Hora de um jornal quase-comunista de extrema-esquerda para um diário de oposição respeitável e respeitado”, diz outro documento desclassificado, foi ajudado pela relação especial entre o oficial do IRD e o fundador e presidente do jornal, Dr. Samuel Wainer.
Um arquivo acrescente que “o suplemento produzido por ocasião da visita de Sua Majestade a Rainha pelo Última Hora foi considerado o melhor produzido por qualquer jornal brasileiro — e os americanos até nos perguntaram quanto tínhamos pago ao jornal por ele. “Nem um centavo, é claro”, foi a resposta.
A situação degenerativa dos direitos humanos no Brasil ao final dos anos 1960 evidentemente não preocupava os britânicos.
Em sua revisão anual de dezembro de 1972, o embaixador do Reino Unido no Brasil, David Hunt, foi indiferente às questões de direitos humanos. Absolvendo a liderança, ele culpou o policiamento deficiente e a má imprensa estrangeira, organizações maliciosas como a Anistia Internacional e deu seu apoio entusiástico ao governo sangrento do ditador Médici, chamando-o de “um presidente genuinamente popular que é patentemente honesto e sincero em seu desejo de promover o bem-estar de todos os setores do povo brasileiro”.
Além de ajudar na propaganda, a Grã-Bretanha ofereceu “um curso de treinamento de quinze dias em junho de 1969 para dois membros de um grupo especial de inteligência dentro do Ministério de Relações Exteriores”, bem como conselhos sobre “métodos sofisticados de interrogatório [tortura]”.
Escrevendo em 1970, o adido de defesa britânico PB Winstanley concluiu: “Apesar da apatia obtusa do povo, o país está avançando tão rápido quanto, talvez, a natureza de seus milhões de mulatos permitir”.
Agenda Canning
Desde novembro de 2010, o relacionamento do Reino Unido com a América Latina tem sido direcionado por uma iniciativa de política externa chamada de Agenda Canning, lançado pelo então secretário de Relações Exteriores, William Hague. Dez anos depois, podemos avaliar a direção da política externa britânica, do Brasil à Bolívia, de Honduras à Venezuela, e notar que isso serviu para minar a democracia e ajudar os responsáveis pelos principais abusos dos direitos humanos.
Na Bolívia, o Reino Unido reconheceu e apoiou abertamente o regime liderado por Jeanine Añez, que chegou ao poder por meio de um golpe sangrento em 2019. No mesmo ano, a Grã-Bretanha também se apressou para reconhecer o autodeclarado presidente da Venezuela, Juan Guaidó, congelando mais tarde quase 2 bilhões de dólares de ouro venezuelano mantido no Banco da Inglaterra, estabelecendo uma “Unidade de Reconstrução da Venezuela” dentro do Ministério de Relações Exteriores, e financiando iniciativas anticorrupção e pró-oposição.
A Grã-Bretanha evidentemente teve um lado na própria crise democrática do Brasil. De acordo com arquivos obtidos sob o Freedom of Information Act, autoridades britânicas também mantiveram reuniões secretas com o candidato neofascista Jair Bolsonaro antes, durante e depois da campanha eleitoral brasileira de 2018. Meses antes da votação, por exemplo, o embaixador britânico Vijay Ringarajan enviou um convite a Bolsonaro sobre uma reunião secreta com os “Parceiros Estratégicos” britânicos – um lobby de empresas farmacêuticas, extrativas e de armas, incluindo BP, AstraZeneca e a gigante da mineração, Anglo American.
A Grã-Bretanha também mantém as Ilhas Malvinas e Belize como possessões imperiais. Como revelou o Declassified UK, o exército britânico ainda está “usando um sexto da massa terrestre total de Belize para treinamento de guerra na selva”.
Agora, como antes, a Grã-Bretanha vê a América Latina em termos geoestratégicos e comerciais. No contexto de uma nova Guerra Fria, com as potências do Atlântico Norte buscando afastar o continente das alianças com a Rússia e China, observamos que o relacionamento da Grã-Bretanha com a região está ainda mais parecido com os dias sombrios de meados do século XX do que se imagina.
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