Com o coronavírus aniquilando pessoas por todo o mundo, este pode ser um momento estranho para o otimismo sobre a saúde pública, mas vale a pena discutir as implicações de algumas boas notícias recentes. O primeiro antibiótico do mundo descoberto por inteligência artificial, anunciado no início do ano passado, é genuinamente uma conquista impressionante. Trata-se, finalmente, de um exemplo do cumprimento das promessas do aprendizado de máquina, de maneira espetacular.
Os pesquisadores do MIT responsáveis pela nova abordagem na descoberta de medicamentos denominaram o antibiótico como “halicina”, em homenagem a HAL, a Inteligência Artificial assassina de 2001: Uma Odisséia no Espaço. E realmente a halicina é uma assassina, fortemente eficaz contra uma grande variedade de cepas de “superbactérias” multirresistentes, incluindo a mycobacterium tuberculosis – responsável pela tuberculose – e dois dos três principais alvos prioritários para pesquisa de patógenos para a Organização Mundial de Saúde, a acinetobacter baumannii e a enterobacteriaceae, devido à sua resistência aos carbapenêmicos, uma classe de antibióticos de “último recurso” para além da qual não temos defesa.
Os pesquisadores primeiramente treinaram uma rede neural artificial – um sistema de aprendizagem computacional que usa uma série de nós de processamento de informação simples, mas interconectados, que imita a rede de neurônios que compõem o cérebro dos animais, para que ela se tornasse capaz de identificar relações em um conjunto de dados – com uma coleção de alguns milhares de moléculas. A coleção incluía medicamentos já existentes e aprovados, mas também outras substâncias que sabemos que atuam para interromper as atividades bacterianas. O modelo não precisa ser programado com a experiência e conhecimento de biólogos moleculares que sabem como os antibióticos funcionam; em vez disso, ele aprende a reconhecer padrões sobre os quais esses especialistas humanos podem nem mesmo estar cientes.
Depois que esse beagle digital foi treinado para farejar esses padrões moleculares de “antibioticidade”, ele foi então testado tendo de vasculhar uma biblioteca de cerca de 6.000 moléculas atualmente sendo investigadas como possíveis candidatas para o tratamento de diferentes doenças humanas. Os pesquisadores pediram para que o modelo identificasse compostos que seriam eficazes contra E. coli e escolher aqueles que tinham forte atividade antibacteriana, mas que também tinham uma estrutura química diferente de qualquer antibiótico atual.
Por sua vez, os compostos identificados foram testados no mundo real em ratos e um deles foi considerado não apenas eficaz contra uma ampla gama de patógenos, mas parecia ter baixa toxicidade e – devido ao seu novo mecanismo de atividade antibacteriana – se revelou muito mais robusto contra o desenvolvimento de resistência aos antibióticos.
Descobertas recentes de antibióticos em laboratório sofreram com sua relativa similaridade com os mecanismos antibacterianos já existentes. Isso significa que as mutações evolutivas precisam de pouco mais do que alguns dias para contorná-las, e a resistência aos antibióticos rapidamente ressurge. Com mecanismos antibacterianos radicalmente diferentes identificados pelo algoritmo, a evolução bacteriana fica um pouco mais desorganizada. Os pesquisadores disseram que, mesmo trinta dias depois, não viram sinais de resistência à halicina.
Após esse sucesso, a equipe de pesquisa então colocou o beagle para caças mais medicamentos e o aplicou sobre uma biblioteca ainda maior, com 1,5 bilhão de compostos, focando inicialmente em pouco mais de 100 milhões deles. Mais uma vez, foram identificados cerca de 23 compostos candidatos, dois dos quais pareceram especialmente eficazes.
Os pesquisadores agora pretendem aplicar essa técnica para descobrir antibióticos que sejam mais capazes de discriminar os tipos de bactérias que atacam, matando os patógenos enquanto deixam as bactérias benéficas da flora intestinal em paz.
Inteligências Artificiais já foram aplicados a outros aspectos da pesquisa de antibióticos anteriormente – naquilo que os pesquisadores chamam de triagem “in silico“, em oposição a in vivo (estudos realizados em organismos vivos) ou in vitro (aqueles conduzidos “no vidro”, fora de organismos por meio de tubos de ensaio, placas de petri, frascos, etc.). Todavia, os modelos anteriores ainda precisavam de alguma inicialização a partir de suposições humanas; nenhum deles fora suficientemente preciso para identificar novos antibióticos sem essa assistência. James Collins, o bioengenheiro que liderou a equipe, acredita que a halicina é um dos antibióticos mais poderosos já descobertos.
Em um artigo no periódico Cell detalhando seu trabalho, os pesquisadores descrevem como foram levados a experimentar esse método pelo “decrescente desenvolvimento de novos antibióticos no setor privado, resultado da falta de incentivos econômicos”. Se nenhuma ação urgente for tomada para descobrir e desenvolver novos antibióticos, as autoridades de saúde pública projetam que as mortes por resistência aos antibióticos chegarão a 10 milhões por ano em torno de 2050.
Essa calamidade anual que poderia ser evitada pode acabar surgindo porque não é suficientemente lucrativo pesquisar, testar e fabricar uma mercadoria que, se funcionar, será comprada apenas por algumas semanas ou, no máximo, alguns meses, até que a infecção desapareça – e que funciona melhor quanto menos pessoas a usarem. Os antibióticos operam na direção oposta de como funciona o livre mercado.
A descoberta de antibióticos também já é muito, muito difícil, e está ficando cada vez pior, com as mesmas moléculas sendo redescobertas continuamente. Novas versões dos antibióticos existentes “resultam em substancialmente mais fracassos do que boas pistas”, lamentam os autores do artigo sobre a halicina.
“Estamos enfrentando uma crise crescente em torno da resistência aos antibióticos, e esta situação está sendo gerada por um número crescente de patógenos se tornando resistentes aos antibióticos existentes e por um processo anêmico nas indústrias de biotecnologia e farmacêutica para o desenvolvimento de novos antibióticos”, disse James Collins, um dos autores do artigo.
As principais empresas farmacêuticas abandonaram todos os aspectos do desenvolvimento e produção de antibióticos, porque não faz sentido comercial produzir um medicamento que funciona melhor quanto menor for o número de pessoas que o usam, e que também é usado apenas por algumas semanas ou meses. Os medicamentos para doenças crônicas que devem ser tomados todos os dias pelo resto da vida do paciente são significativamente mais lucrativos. Assim, as Grandes Farmacêuticas (ou “Big Pharma”) em termos gerais abandonou este espaço há cerca de três ou quatro décadas, preferindo as pastagens mais verdes de terapêuticas mais lucrativas.
Ainda há empresas de pequeno e médio porte, muitas vezes originadas de universidades ou laboratórios governamentais, que tentaram preencher essa lacuna, mas tendem a não ter o capital ou outros recursos necessários para ir além dos estágios iniciais de pesquisa. Alguns pesquisadores e algumas empresas estão concentrando seus esforços em alternativas aos antibióticos, como bacteriófagos, anticorpos, probióticos ou lisinas. Todas são pesquisas promissoras, mas também sofrem da mesma falha de mercado inerente aos antibióticos.
Portanto, os pesquisadores que usam o aprendizado de máquina para a descoberta de antibióticos estão apostando nessa nova técnica a fim de aumentar a taxa em que são identificadas os primeiros candidatos promissores para novos antibióticos em potencial e, ao fazê-lo, reduzir radicalmente os custos do processo. Ao reduzir os requisitos de capital para a descoberta inicial de candidatos a medicamento, espera-se que isso torne a pesquisa, o desenvolvimento e a fabricação de antibióticos mais atraentes para as empresas farmacêuticas.
Um comunicado à imprensa pelo MIT anunciando a descoberta sugere que essa nova técnica substituiu aquele processo anêmico por “um novo processo”, talvez até mesmo “um novo paradigma” para a descoberta de medicamentos em geral. Os pesquisadores esperam que a mesma abordagem possa ser usada para outros tipos de drogas que possam ser usadas contra o câncer ou doenças neurodegenerativas.
Só que isso apenas ameniza o problema, não o resolve.
Ainda nos deparamos com as mesmas falhas de mercado inerentes que têm sido relatada tantas vezes, não apenas para defesa antibacteriana, mas para antifúngicos, para vacinas, para doenças tropicais negligenciadas, para o desenvolvimento de diagnósticos apropriados para o mundo em desenvolvimento, e para o desenvolvimento de diagnósticos para patógenos prioritários durante períodos sem surto.
O problema é que se um bem ou serviço não for lucrativo, ou mesmo insuficientemente lucrativo, uma empresa não o produzirá. Na verdade, um executivo de uma empresa possui a responsabilidade legal de não produzi-la.
Três vivas então por potencialmente tornarem a descoberta de compostos candidatos muito mais barata com a IA, mas continua sendo o caso de que, independente de quão barata seja parte do processo de produção, se uma mercadoria não for suficientemente lucrativa, ela ainda não será feita.
Além disso, a descoberta de medicamentos também representa apenas uma parte dos custos gerais de produção. Os testes clínicos são incrivelmente caros, e a fabricação e distribuição também não são gratuitas. Os pesquisadores agora esperam obter uma parceria com uma empresa farmacêutica para levar a halicina para testes clínicos, ou talvez (com o talvez sendo o mais provável) uma organização sem fins lucrativos.
Estamos vendo cada vez mais instituições médicas de caridade, redes intergovernamentais sem fins lucrativos e filantropos bilionários preenchendo as crescentes lacunas no fornecimento de fundos para pesquisas, fabricação e infraestrutura médicas em nível global. Relatório após relatório vem sendo emitidos recomendando várias gambiarras institucionais para essa vasta falha de mercado, como aumento de subsídios para empresas privadas, expansão de financiamento para bolsas de pesquisa, incentivos fiscais, fundos de prêmios que vinculam pagamentos de recompensas segundo os impactos na saúde, procedimentos de aprovação acelerados, compromissos de mercado adiantados ou o pagamento às empresas farmacêuticas de um prêmio de seguro regular para o desenvolvimento de antibióticos quando necessário.
Na última década, em resposta ao problema crescente da resistência aos antibióticos, houve mais de 50 novas iniciativas nacionais e internacionais importantes tentando corrigir a falha do mercado e incentivar a P&D e a fabricação de antibióticos, desde a Iniciativa de Programação Conjunta sobre Resistência Antimicrobiana (JPIAMR, na sigla de “Joint Programming Initiative on Antimicrobial Resistance”) até o programa Novas Drogas Para Doenças Ruins (ND4BB, na sigla de “New Drugs for Bad Bugs”). A Assembleia Geral da ONU tem realizado reuniões de cúpula e os líderes políticos têm cada vez mais falado sobre a resistência antimicrobiana como uma prioridade.
Mas mesmo que em sua maioria sejam bem-vindos e possuam alguma utilidade, nenhum desses esforços ataca a raiz do problema da mesma forma que a desmercadorização do setor farmacêutico em sua totalidade poderia fazer. Em outras palavras, a eliminação completa do mercado nesse setor, semelhante a como em muitas jurisdições os bombeiros são simplesmente um serviço público. Praticamente todos os analistas já assumem que precisamos apenas encontrar os incentivos certos para as empresas privadas. A possibilidade de que a própria existência de empresas privadas neste setor seja o problema está fora dos limites do imaginável.
Alguns pesquisadores e economistas da saúde, pelo menos nos últimos anos, têm começado a sugerir pelo menos a criação de empresas farmacêuticas de propriedade pública. Mas, embora isso se aproxime muito do problema central da descomodificação, ainda deixa as empresas farmacêuticas existentes de pé.
Mas mesmo que isso se aproxime bem mais do problema central da desmercadificação, ainda deixa de pé as empresas farmacêuticas existentes.
Não devemos ter medo da palavra nacionalização. Com o governo assumindo o controle do setor como um todo, podemos simplesmente redirecionar o dinheiro obtido com medicamentos lucrativos para aqueles que não são (e que podem nunca o ser), sem a preocupação de ser colocado para fora do mercado. É a opção mais eficiente e também a mais justa. Por que deveríamos deixar que as empresas privadas escolham as áreas lucrativas de desenvolvimento de medicamentos enquanto o contribuinte fica preso nas áreas não lucrativas?
Mas não podemos culpar todos os consultores de políticas públicas, especialistas, pesquisadores e médicos por evitar aquela que certamente deveria ser a opção mais óbvia e direta. Eles ignoram cuidadosamente o elefante na sala porque – bem, porque para eles isso é conversa de maluco. Nacionalização de todo o setor farmacêutico? Isso… Isso seria… Bom, isso já é socialismo!
É, é sim. E há um paralelo aqui com o debate sobre o socialismo democrático no interior do debate atual nos EUA em torno de um sistema universal de saúde para todos versus apenas uma opção pública. Graças a anos de um movimento de massa lutando por um sistema de saúde gratuíto e universal nos Estados Unidos e à insistência intransigente de Bernie Sanders de que meias medidas simplesmente não produzem os melhores resultados de saúde, são injustas e mais caras, agora estamos em uma situação nos EUA onde quase todos no Partido Democrata precisam, pelo menos retoricamente, admitir que um sistema público de algum tipo pode sim ser a melhor solução, mesmo que ainda não seja uma opção realista.
O que até recentemente era rejeitado como inconcebível agora é uma opção séria sobre a mesa, e todas as outras figuras são forçadas a orbitar em torno desse quadro político. Precisamos fazer o mesmo com relação ao setor farmacêutico: fazer com que a nacionalização do setor seja reconhecida por padrão como a melhor opção, à qual todos agora devem responder de alguma maneira.
Portanto, a lição é que uma escala semelhante de movimento de massa que ocorreu para o Medicare para Todos, mas agora para a nacionalização do setor farmacêutico, deve ser construída nos próximos anos. Claro, deve-se reconhecer que a prioridade nos Estados Unidos agora é o Medicare for All, mas saindo disso, uma vez que a batalha seja ganha, também é necessário que haja um novo movimento em torno da indústria farmacêutica.
Portanto, a lição que fica é que um movimento de massa em uma escala semelhante ao que ocorreu nos EUA para o programa Medicare para Todos, mas agora em nome da nacionalização do setor farmacêutico, deve ser construído nos próximos anos. Evidentemente, é preciso reconhecer que a prioridade nos EUA agora é o Medicare para Todos, mas uma vez que essa batalha esteja ganha, também será necessário que haja um novo movimento em torno da indústria farmacêutica.
Médicos e pesquisadores que enfrentam a resistência antimicrobiana repetidamente descrevem o problema como uma ameaça pelo menos tão grande quanto as mudanças climáticas, e mesmo assim não vemos ativistas trabalhando sobre essa questão com o mesmo compromisso ou afinco. Isso precisa mudar.
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