A Câmara dos Vereadores de São Paulo, a partir de 2021, têm o maior número de parlamentares trans de sua história. Quatro vereadores trans foram eleitos, três delas são mulheres trans eleitas pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL). Com menos de um mês de mandato duas delas já sofreram ameaças e atentados.
Na madrugada de terça-feira, 26 de janeiro, Carolina Iara, covereadora pelo PSOL em São Paulo, teve a sua casa na Zona Leste alvejado por dois disparos e no dia seguinte, 27 de janeiro, a também vereadora paulista Erica Hilton registrou um boletim de ocorrência após ter seu gabinete invadido por um homem que deixou uma carta ameaçando a sua vida.
A covereadora conversou com Aline Klein, editora da Jacobin Brasil, que, ainda abalada, contou sua história de luta, marcada por enfrentamentos contra os interesses econômicos do capitalismo bem como contra a moralidade sexual conservadora da sociedade.
Envolvida desde a adolescência na política, primeiro com a militância de bairro na Fazenda da Juta, Zona Leste da capital, Carolina entra na Universidade de Saúde Pública e dedica-se às vítimas de violência sexual. A partir dali envolve-se com o movimento feminista e de direitos humanos, sem muito aprofundamento nas ideias socialistas. É só a partir das jornadas de 2013 que, em suas palavras, faz uma verdadeira imersão no marxismo e no feminismo negro e passa a se considerar uma militante socialista.
Ainda dentro da Saúde Pública, em 2014, passa a fazer parte dos movimentos sociais que discutem a AIDS, já que a própria vereadora vive com HIV, e se envolve cada vez mais no movimento LGBTQIA+.
Em 2018 ajudou a fundar a Associação Brasileira de Intersexos e em 2020 vence as eleições como coveradora do PSOL, partido que está desde 2015, no mandato coletivo da Bancada Feminista.
AK
Você poderia nos contar como foi o atentado? Você acredita que se trata de um atentado político?
CI
Eu estava em casa escrevendo um artigo e ouvindo música, já estava preparada para ir dormir quando minha mãe que estava na cozinha fazendo chá veio correndo me avisar que ouviu dois disparos muito perto da nossa casa. Naquele primeiro instante eu até pensei que pudesse ser algum tipo de violência do bairro, tentei acalmar minha mãe e disse que se ouvíssemos mais alguma coisa eu chamaria proteção.
Na manhã seguinte toda a vizinhança relatou ter escutado os mesmos disparos e alguns vizinhos disseram ter visto um carro no mesmo horário. Conseguimos as imagens das câmeras de segurança com um deles, as mesmas que circularam na imprensa. Nelas é possível ver um carro branco parado na porta da minha casa entre 2:07 e 2:11 da manhã da quarta-feira e após os barulhos de disparos é possível ver alguém entrando no carro e saindo correndo. Foi feita uma primeira perícia, mas será realizada mais uma para identificar se os buracos que encontramos no muro são dos disparos. O fato é que aconteceu um atentando político, e um atentado assustador, com o objetivo de me intimidar. É muito grave que a casa de uma vereadora de esquerda seja alvejada dessa forma violenta. Me parece um recado muito direto.
AK
Ao mesmo tempo que vemos mulheres, negros e socialista aumentando seu espaço de disputa e elegendo novos parlamentares, temos visto um aumento dos ataques e ameaças sofridas pelas parlamentares do PSOL. Taliria Petrone é constantemente ameaçada de morte por milícias cariocas, Isa Penna foi assediada no plenário, e agora você e Érica Hilton sofrem ataques na mesma semana. A que podemos atribuir o aumento explicito desses ataques políticos?
CI
São dois aspectos diferentes a serem considerados. Um diz respeito ao aumento da violência política e misoginia a partir de 2015, onde pudemos ver isso com o processo de golpe contra Dilma Rousseff. Ainda que com todas as críticas que eu possa ter ao governo de conciliação de classe do Partido dos Trabalhadores (PT), naquele momento já víamos o aumento dessa violência. Um ano e meio depois assistimos a terrível morte de Marielle Franco que abriu uma escalada de ameaças e ataques. Taliria Petrone, deputada federal pelo PSOL, passou viver na clandestinidade após ameaças. Temos muitas parlamentares sendo ameaçadas e assediadas como você bem apontou. Erica Hilton teve o seu gabinete invadido, e agora eu, vítima desse atentado que mesmo que tenha sido uma forma de me assustar foi uma tentativa de atentar contra a minha vida.
Por outro lado, eu penso que existe também um aumento das exigências e das mobilizações do movimento negro, feminista e trans na ocupação dos espaços políticos, estamos falando de uma esquerda que tem tentado renovar seus quadros e as mulheres estão tendo um papel de destaque nessa renovação. Isso combinado com a atual configuração reacionária do Estado e da sociedade brasileira, que nos levaram até a eleição de Bolsonaro, tem deixado essas ameaças e ataques mais explícitos, mesmo que contraditório.
AK
Diante dessa nova situação, quais são os principais desafios que as parlamentares mulheres, principalmente as trans e negras, enfrentam para conseguir seguir com o trabalho político?
CI
Desafios enormes, o primeiro é o da garantia da segurança parlamentar para os quadros da esquerda. Sabemos que os políticos da direita não sofrem ameaças e atentados com a mesma intensidade, é muito mais raro, enquanto políticos de esquerda, principalmente as parlamentares mulheres de esquerda, negras e trans, lidam constantemente com ameaças da extrema direita ou grupos de ódio.
No meu caso, o que chama a atenção, é a violência simbólica dos tiros. Não foi uma carta, não foram ameaças verbais, que causariam um terror psicológico tão terrível quanto, mas o simbolismo de serem tiros é uma coisa muito intensa para uma pessoa negra e trans de periferia. Além do fato da ousadia desse atentado acontecer na maior cidade do país que até então não tinha assistido esses tipos de ataques.
Portanto um dos desafios para seguir com o meu trabalho é a segurança. Estamos providenciando a forma de fazer isso, tanto cobrando do Estado quanto contando com a auto organização da esquerda. A esquerda inteira precisará fazer uma serie de reflexões e rever os seus métodos, se organizar ainda mais para garantir a nossa própria proteção, não estamos em uma situação nada pacífica afinal de contas. É preciso entender a nossa responsabilidade coletiva.
CI
A principal é a da proteção dessas vidas. A solidariedade de classe é urgente e mesmo que eu esteja recebendo muita solidariedade é necessário se organizar também no sentido de garantir proteção anterior, antes que as ameaças se concretizem. Nos acostumamos e vivemos muito tempo em um regime de conciliação entres as classes, em uma democracia burguesa com uma escala menor de violência política. Enquanto esquerda, nos desacostumamos com situações mais adversas e até de clandestinidade. Precisamos estar preparados para agir tanto no sentido formal da disputa da institucionalidade mas também estar preparados para a qualquer momento estar de novo na clandestinidade.
Esse preparo me parece uma responsabilidade crucial.
AK
Entendendo esse aumento da violência política desde o golpe de 2016 como parte da situação reacionária e da chegada da extrema direita ao poder, existe algum grupo específico que já possa ser relacionado com esses ataques recentes? O discurso da Bancada Feminista incomodava algum grupo particular?
CI
Não identificamos nenhum grupo específico ainda, e isso nos deixa preocupados, porque não recebi ameaças de avisos, assim como Marielle também não havia recebido antes do seu assassinato. Eu não recebi nenhuma mensagem ameaçadora que pudesse criar o alerta, nada que fugisse dos comentários online dos haters de direita na internet. O que vivi durante a campanha era uma intensa movimentação de homens me assediando nas redes sociais, mandando obscenidades, nudes não solicitados em uma escala muito grande. Mas ainda não sabemos qual grupo promoveu esse atentado. Por isso exigimos investigações.
AK
Mas quais são os setores sociais que se sentem mais ameaçados pelo seu discurso e trabalho?
CI
Olha, são tantos, porque nosso discurso se confronta com empresas que terceirizam serviços, com a direita propriamente dita e seus discursos de ódio. O próprio fato de eu ser negra e trans, a primeira mulher intersexo a ser parlamentar no Brasil, falando em todos os cantos que existe possibilidade biológica fora do sexo masculino e do sexo feminino já desperta o ódio de setores fundamentalistas. Veja como é amplo, tanto do ponto de vista do enfrentamento com os interesses econômicos de máfias e empresários por sermos socialistas, bem como esse enfrentamento com o fundamentalismo religioso ligado a discursos de ódio.
Para esses setores eu represento muitas ameaças em um corpo só.
AK
Como a polícia e o governo do Estado de São Paulo receberam o caso e que direcionamento está adotado para as investigações?
CI
Como já havia uma repercussão da imprensa, quando cheguei na delegacia fui bem recebida. Com a ajuda da deputada estadual Erica Malunguinho (PSOL), conseguimos mobilizar o Secretário de Segurança Pública, que enviou mais delegados para acompanharem a investigação. Esse esforço se deve porque há um interesse da direita tradicional paulistana, ligada ao PSDB, que não quer ser associada com a direita bolsonarista. Mas não devemos ter ilusões com esse setor.
AK
O que os movimentos sociais e a esquerda devem fazer diante desses atentados?
CI
Precisamos, enquanto esquerda e movimentos sociais, manter a pressão porque não se trata de um ataque só a mim. Foi um recado para toda a esquerda, para todas as mulheres negras na política, para todas as mulheres trans. Não são só cartas, são ameaças que podem chegar as vias de fato. É preciso uma unidade de ação na esquerda, não só para proteção, mas para exigir que o caso seja investigado. Ainda não sabemos se foi o caso de alguém desorganizado que tenho feito isso só alimentado pelos discursos de ódio ou foi um caso mais articulado e orquestrado por algum grupo, mas precisamos avançar nessa investigação para conseguir desbaratar ações futuras.
Be First to Comment