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Ilustração de Charlie Le Maignan

Para onde foram os jogadores politizados no futebol europeu?

O filme Diego Maradona de Kapadia soa como um documentário excelente, mas também como uma cápsula do tempo para outra época. Assistindo, não dá para deixar de comparar Maradona com seu compatriota Lionel Messi.

Se Kapadia quisesse fazer um estudo sobre a vida de Messi daqui a vinte anos, ele não teria muito com o que trabalhar: um pacote de destaques de gols maravilhosos, intercalados com cabeças falantes em homenagem a genialidade do futebol de Messi. O drama extracurricular da vida de Maradona estaria totalmente ausente.

No que diz respeito ao próprio Messi, isso provavelmente não é algo ruim: ele está melhor sem o hábito de cocaína de Maradona, a suposta violência doméstica ou os laços comprometedores com a Camorra napolitana. Mas algo importante também se perdeu ao longo do caminho: a carreira de Maradona lança luz sobre alguns dos grandes dramas políticos de sua época.

Em parte, era mais uma questão daquilo que ele simbolizava do que das opiniões que expressava: um jogador de futebol argentino que marcou duas vezes contra a Inglaterra na Copa do Mundo de 1986, quatro anos após a Guerra das Malvinas; o maior jogador do mundo indo para Nápoles, em um momento de crescentes tensões regionais, e tirando seu time da mediocridade para reivindicar o campeonato italiano, às custas dos clubes mais ricos de Turim e Milão.

No entanto, Maradona também assumiu posições políticas próprias, associando-se a Fidel Castro e Hugo Chávez, e aderindo aos protestos contra George W. Bush em 2005. Messi, que desde a adolescência foi cuidadosamente acompanhado por seu clube, o Barcelona, mantém um perfil muito mais discreto.

Homens da corporação

O abismo entre os dois homens reflete a natureza mutante do jogo. Em seu livro “The Football Men” (“Os Homens do Futebol”), Simon Kuper descreve como a crescente profissionalização e comercialização do futebol europeu na prática matou dois arquétipos: o jogador estrela de rock hedonista (Maradona, George Best) e o líder carismático (Franz Beckenbauer, Johan Cruyff).

Como explica Kuper, os jogadores de futebol modernos são “ativamente desencorajados a desenvolver interesses fora do jogo” e desligados de seu grupo de colegas em um estágio muito inicial. Eles recebem treinamento de mídia para aprender a arte de falar longamente, sem dizer nada polêmico. Os clubes que investem tanto na carreira de um jogador querem que ele seja “um homem da corporação, ligeiramente monomaníaco e que só diga sim”.

Na Grã-Bretanha, sede da liga de futebol mais lucrativa do mundo, os jogadores de futebol são quase únicos entre as profissões de destaque porque em grande parte são escolhidos entre a classe trabalhadora. Em contraste com campos como a política, mídia, negócios e o direito, jogadores de futebol advindos das caríssimas escolas privadas são figuras cada vez mais raras no Reino Unido. No entanto, os salários que recebem os afastam totalmente da experiência da classe trabalhadora.

No passado recente, os jogadores podiam ter uma vida decente, mas ainda teriam que encontrar uma nova fonte de emprego quando se aposentassem, geralmente como gerentes ou analistas. Seus colegas modernos não precisam se preocupar, contanto que administrem bem seu dinheiro.

No nível mais alto do jogo, os jogadores circulam livremente entre cidades e países, indo de Madrid a Manchester, Munique e Milão, sem ter que mudar seus hábitos ou estilo de vida. Este não é um ambiente que incentive as pessoas a desenvolverem opiniões políticas fortes, muito menos expressá-las em público.

“O socialismo no qual acredito”

Isso não quer dizer que o futebol fosse um viveiro de política antes da era da Sky Sports e da Liga dos Campeões. O grau de politização variava: o futebol na Itália tinha uma forte ligação com as lutas políticas do país, como mostra John Foot em sua grande história do futebol italiano em Calcio. Roma e Lazio, as duas equipes da capital italiana, tinham a imagem de clubes de esquerda e de direita, respectivamente. Nenhum time inglês gozava da mesma reputação.

Marcello Lippi, que treinou a Itália para o triunfo da Copa do Mundo em 2006, é filho de um militante sindical da fábrica de automóveis da Fiat em Torino. De acordo com Lippi, quando assumiu o cargo de técnico da Juventus nos anos 90 – assim como a Fiat, propriedade da família Agnelli -, foi ao túmulo do pai se desculpar: o pai de Lippi desprezava o clube de Turim e “tudo que ele representava.”

No futebol inglês, muitas vezes eram os treinadores, e não os jogadores, que falavam politicamente. Bill Shankly, que primeiro estabeleceu o Liverpool como um dos melhores clubes da Inglaterra, era um socialista confesso, cuja definição concisa de sua perspectiva política ainda aparece em camisetas e faixas na cidade: “O socialismo no qual acredito é aquele em que todos trabalham pelo mesmo objetivo e todos tem uma parte nas recompensas. É assim que vejo o futebol, é assim que vejo a vida.”

Brian Clough e Jack Charlton apoiaram abertamente o sindicato dos mineiros durante as grandes greves dos anos 1970 e 1980. O líder dos mineiros Arthur Scargill gostava de contar uma história sobre Charlton emprestando seu carro para o sindicato local durante a greve de 1984-85. Ele o pegou emprestado por um dia para dirigir até Nottingham para um encontro profissional com Clough, apenas para ser parado no caminho por um bloqueio policial.

Os policiais tinham ordens para impedir que qualquer participante de piquetes entrasse em Nottinghamshire, então, quando viram o adesivo “COAL NOT DOLE” (“CARVÃO, NÃO ESMOLA”) de Charlton, eles o mandaram encostar. Charlton pediu à polícia que imaginasse o que o famoso e irascível Clough faria a todos eles se atrasasse para a reunião, e eles imediatamente o dispensaram.

O último representante dessa tradição foi o técnico do Manchester United Alex Ferguson, que liderou uma greve de aprendizes de engenharia nos estaleiros de Glasgow antes de fazer carreira no futebol. Ferguson era uma das celebridades apoiadoras que o Novo Trabalhismo,  gostava de desfilar na pompa de Tony Blair, mas a maneira como ele justificava seu apoio ao partido tinha um impulso distinto, carregado de “Velho Trabalhismo”:

Eu cresci em uma área operária de Glasgow.. .acreditando que o Partido Trabalhista era o partido do trabalhador, e ainda acredito nisso … Toda a minha vida eu vi o Partido Trabalhista como o partido que trabalha para obter melhores cuidados de saúde para as pessoas comuns, e os Conservadores realmente se preocupam apenas com as pessoas no topo.

Em 2012, Ferguson enviou uma mensagem de apoio aos operários irlandeses que ocupavam sua fábrica em Cork, relembrando sua própria carreira como ativista sindical meio século antes.

Duas exceções

Shankly, Clough, Charlton e Ferguson cresceram em comunidades da classe trabalhadora na Escócia ou no norte da Inglaterra, em uma época em que o Partido Trabalhista e os sindicatos faziam parte do tecido social. Os jogadores de futebol modernos geralmente não têm essa experiência.

Na cúpula do esporte, os clubes super-ricos produzem um produto padronizado para o mercado mundial, imitando o desenvolvimento do capitalismo global. A maioria deles já não está inserida socialmente em qualquer sentido significativo. A empresa proprietária do Manchester City transformou “City” em uma marca transnacional, com clubes franqueados em Melbourne, Mumbai e Nova York.

Os proprietários nem mesmo usam sua equipe como veículo para o sucesso na política nacional, da mesma forma que Silvio Berlusconi usou o AC Milan como plataforma de lançamento para sua carreira como primeiro-ministro da Itália. O oligarca russo Roman Abramovich e o xeique Mansour bin Zayed Al Nahyan dos Emirados Árabes compraram o Chelsea e o Manchester City na esperança de lavar sua reputação (“lavagem esportiva”). Eles parecem não ter nenhum interesse na cena política britânica, no entanto, desde que isso não interfira em seus negócios.

Há duas exceções principais a essa regra entre os super clubes europeus: Barcelona e Liverpool. O time catalão tem uma conexão tão forte com a identidade nacional que não poderia deixar de se ver envolvido com a agitação por um Estado nos últimos anos. O ex-técnico do Barcelona, ​​Pep Guardiola, um produto da academia de jovens do clube, é um defensor público do movimento de independência catalão, que usou sua plataforma de mídia para denunciar a repressão de seus líderes.

Liverpool, entretanto, ganhou sua reputação como a cidade mais esquerdista e anti-Partido Conservador na Inglaterra. O desastre de Hillsborough em 1989 estabeleceu uma ligação inextricável entre o futebol e a política na cidade. Noventa e seis fãs morreram por negligência grosseira pela mesma força policial que havia cercado, perseguido e esmagado os mineiros em Orgreave alguns anos antes. Policiais mentiram sobre o que aconteceu para encobrir seus rastros, com o apoio entusiástico do jornal The Sun de Rupert Murdoch, que publicou em sua primeira página mentiras revoltantes e difamatórias sobre os torcedores do clube.

Três décadas depois permanece firme um boicote ao The Sun na região de Merseyside. Os torcedores do Liverpool nunca perdoaram seu ex-empresário Graeme Souness por conceder uma entrevista ao jornal no início dos anos 90, quando as feridas de Hillsborough ainda estavam abertas. A longa campanha das famílias de Hillsborough por justiça fez tudo para expor o coração sombrio do Estado britânico: não apenas as famílias estabeleceram a culpabilidade da polícia por “homicídio culposo por negligência grave”, seus esforços também lançaram nova luz sobre as táticas de policiamento usadas durante a greve dos mineiros.

Gary Neville é um vermelho

Não é surpreendente que o ex-capitão do Liverpool, Jamie Carragher, tenha apoiado o Partido Trabalhista nas eleições gerais do ano passado. Carragher, que cresceu em Liverpool e passou toda a sua carreira na cidade, dedica algumas páginas de sua autobiografia para explicar por que se importava muito mais com o clube do que com a seleção inglesa:

Sempre que voltava para casa depois de uma decepção na Inglaterra, um pensamento inabalável e predominante vinha à tona em minha mente, não importa o quanto o resto da nação chorava. “Pelo menos não era o Liverpool”, repetia para mim mesmo, sem parar… Se as pessoas querem me condenar e dizer que não sou patriota, que assim seja… Todos nós ouvimos sobre a importância [da vitória na Copa do Mundo] de 1966 para o país. Para minha família, o evento mais importante em Wembley naquele ano foi que o Everton venceu a Copa da Inglaterra.

Carragher vincula explicitamente esse desdém pela sorte da Inglaterra a uma mentalidade de “eles e nós” que se enraizou em Merseyside durante os anos Thatcher: “Eu ouvi o estádio cantar ‘não somos ingleses, somos scouse’ [o sotaque típico da região de Merseyside]. Não há afinidade com a seleção nacional.”

Houve um momento comovente no dia da eleição no ano passado, quando o grande rival de Carragher, Gary Neville, se juntou a ele para pedir um voto a favor do Partido Trabalhista. O jogador do Manchester United era notoriamente hostil ao Liverpool como clube – “Gary Neville é um vermelho, ele odeia Scousers” era um cântico familiar no estádio de Old Trafford – mas sua evidente aversão por Boris Johnson o colocava na mesma página que a grande maioria dos Fãs do Liverpool.

James McClean odeia a rainha

Claro, Barcelona e Liverpool ainda funcionam da mesma forma que os outros mega clubes, em um esporte multi bilionário que está cheio de complicações comerciais eticamente duvidosas. Não existe clube de futebol socialista nesse nível do esporte, nem poderia existir. No entanto, um forte contexto social às vezes é suficiente para tirar os jogadores do pântano conformista e despolitizante do jogo moderno.

O atacante do Manchester United Marcus Rashford recentemente liderou uma campanha bem-sucedida pressionando o governo britânico a estender o fornecimento de merenda escolar gratuita para famílias pobres até as férias de verão. Rashford relembrou sua própria experiência de pobreza infantil em uma carta aos parlamentares:

Como família, dependíamos de clubes de café da manhã, merenda escolar gratuita e das ações gentis de vizinhos e treinadores. Bancos de alimentos e cozinhas populares não eram algo estranho para nós; me lembro muito claramente de nossas visitas a [o bairro de] Northern Moor para coletar nossos jantares de Natal todos os anos.

Outro exemplo marcante na Premier League é o futebolista irlandês James McClean. McClean vem de Derry, uma cidade que testemunhou o massacre do Domingo Sangrento em 1972. Na última década, ele foi virtualmente a única figura de alto perfil a resistir à cultura piegas e embrutecedora de chauvinismo construída em torno do “Domingo de Memória” (descrita por um apresentador de um canal inglês como “fascismo da papoula”).

A papoula é um símbolo de todas as guerras que o Exército Britânico travou, incluindo aquelas contra a Irlanda. Como era de se esperar, McClean não tinha interesse em participar e se recusou a usar uma camisa com o símbolo da papoula. Desde que fez essa escolha fatídica, McClean tem sido alvo de uma campanha de ódio orquestrada, estimulada todos os anos pela imprensa de direita, que finge não entender o raciocínio por trás de sua decisão, não importa quantas vezes ele respeitosamente o explique.

Como os torcedores do Liverpool que fizeram mais para desafiar Rupert Murdoch do que qualquer político de centro-esquerda na Grã-Bretanha, Austrália ou Estados Unidos, McClean e Rashford mostraram que o esporte ainda pode ser uma ferramenta de mobilização política, bem como um empreendimento lucrativo.

Futebol para o povo

Bill Shankly certa vez comentou de maneira divertida que o futebol não era uma questão de vida ou morte para ele: “É mais importante do que isso.” A passagem do tempo transformou aquele comentário irônico e auto-depreciativo em um clichê bastante obsoleto. Há alguns anos, a lenda do Manchester United Eric Cantona publicou um excelente artigo pedindo que o esporte seja transformado:

O futebol é um dos grandes professores da vida. É uma das grandes inspirações da vida. Mas o atual modelo de negócios do futebol ignora uma parte tão grande do mundo… O futebol deve ser para o povo. Isso não precisa ser uma ideia utópica.

Cantona descreveu como sua vida e carreira foram influenciadas por seu avô, um republicano espanhol que se refugiou na França em 1939. É uma boa aposta afirmar que Shankly teria endossado sua visão sobre a importância social do jogo: “O futebol dá sentido à vida, sim. Mas a vida também dá sentido ao futebol ”.

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