Em 1994, representantes de Azerbaijão, Armênia, Rússia e República de Nagorno-Karabakh assinaram o Protocolo de Bishkek. Após seis anos de combates mortais e limpeza étnica, o documento forneceu um alívio muito necessário – e o fim imediato do derramamento de sangue. Mas isso gerou somente uma paz frágil e, longe de abordar as raízes do conflito, institucionalizou a inimizade mútua e a incerteza sobre o futuro de Nagorno-Karabakh.
Um quarto de século depois, no dia 27 de setembro, os confrontos militares entre a Armênia e o Azerbaijão eclodiram mais uma vez. Novamente, a luta entre esses vizinhos do Cáucaso Sul se concentrou em Nagorno-Karabakh – um Estado montanhoso, de facto independente, mas não reconhecido, cercado por território azeri. Povoado no passado por azeris e armênios, desde a guerra de 1988-1994 o território tornou-se cada vez mais homogêneo, com 150 mil armênios. A região é de jure parte do Azerbaijão, mas desde 1994 tem sido controlada pelas forças armadas armênias locais e totalmente dependentes da República da Armênia para questões de segurança, sobrevivência econômica e acesso ao mundo exterior.
Após duas semanas de violência, no sábado, 10 de outubro, um cessar-fogo foi arranjado às pressas. Isso aconteceu depois de dez horas de negociações entre os ministros das Relações Exteriores de Armênia e Azerbaijão, que se reuniram em Moscou com o chanceler russo Sergei Lavrov. No entanto, mesmo essa trégua é frágil – apenas uma hora após seu início, ambos os lados imediatamente se acusaram mutuamente de desrespeitá-la, enquanto relatos de bombardeios surgiam.
Embora o cessar-fogo de 1994 tenha sido quebrado em inúmeros confrontos, os combates recentes foram os mais graves em décadas. Casos anteriores, como os confrontos em 2008, a guerra de abril de 2016 e as lutas em julho deste ano, são insignificantes em comparação a estes. Desta vez, centenas de civis e militares foram mortos e milhares forçados a deixar suas casas. Os ataques anteriores eram frequentemente causados por circunstâncias obscuras ou acidentais. Mas dessa vez foi diferente, pois a ofensiva azeri levara meses para ser preparada.
O caminho da guerra
Depois que confrontos em julho resultaram na morte do major-general do Azerbaijão, Polad Hashimov, grandes manifestações pró-guerra inundaram a capital Baku. Tropeços em relação a Karabakh acabaram com a carreira de muitos membros das elites azeris na década de 1990 e isso não passou despercebido ao presidente Ilham Aliyev que graças à pressão econômica causada pela crise de COVID-19, não pode ignorar o furor nacionalista. Ele declarou publicamente que buscar uma solução pacífica com a Armênia era inútil. Em 24 de setembro, apenas três dias antes do início dos combates, o Ministério das Relações Exteriores do Azerbaijão divulgou, de forma ameaçadora, uma lista das chamadas “ações provocativas” tomadas pela Armênia desde que o primeiro-ministro reformista Nikol Pashinyan chegou ao poder no país por meio da Revolução de Veludo de 2018.
Após a primeira ofensiva do Azerbaijão em 27 de setembro, o combate escalou rapidamente. Foguetes azeris e artilharia pesada bombardearam Stepanakert, a capital da região, quase diariamente. Foram atacadas cidades dentro da República da Armênia e posições militares ao longo da “linha de contato” de duzentos quilômetros que separa Azerbaijão e Nagorno-Karabakh. As forças armênias reagiram, previsivelmente, atacando posições azeris e repelindo drones – um dos quais foi abatido assustadoramente perto de Yerevan, capital da Armênia. As forças armênias também bombardearam alvos no território do Azerbaijão, incluindo Ganja, a segunda maior cidade do país.
De fato, há uma assimetria substancial entre os dois países, com o orçamento de defesa, equipamento militar e o contingente do Azerbaijão superando em muito os da Armênia. Com uma população de quase dez milhões de habitantes, o Azerbaijão tem um orçamento de defesa de 2,73 bilhões de dólares (5,4% do PIB), enquanto a Armênia tem uma população de pouco menos de três milhões de pessoas e um orçamento de defesa por volta de 500 milhões de dólares (4,7% do PIB). É digno de nota que drones de fabricação turca e israelense têm desempenhado papel central nas operações militares do Azerbaijão: a Anistia Internacional confirma que munições de fragmentação feitas em Israel foram utilizadas em áreas residenciais de Stepanakert.
Membros dos governos de Armênia e Azerbaijão alimentaram os combates com uma guerra de informações simultânea, desencadeando uma avalanche de acusações, desinformação e dados falsos. A retórica intransigente de cada Estado aumenta o abismo de informações não verificáveis que circulam amplamente no Twitter e no Facebook. Apesar de grandes esforços de jornalistas e analistas com boas intenções, essa situação filtra boa parte do conflito para o mundo exterior. Mesmo quando informações mais ou menos precisas estão disponíveis, a imagem geral permanece nebulosa. Por exemplo: a Armênia publica atualizações consistentes sobre suas baixas militares, mas não as civis; enquanto o Azerbaijão faz o inverso.
No entanto, esses detalhes por si só não explicam por que dois países pós-soviéticos, vizinhos, com histórias profundas e entrelaçadas ainda estão em conflito. Fundamentalmente, narrativas oficiais irreconciliáveis e percepções nacionais são centrais para a persistência de tensões e a reprodução da inimizade. A história recente da região pode colocar essa dinâmica em uma perspectiva muito mais nítida.
Histórias nacionais, destinos nacionais
Para os armênios, a defesa de Nagorno-Karabakh (ou Artsakh como é tradicionalmente chamada) é uma luta existencial. Entre 1914 e 1917, 1,5 milhão de armênios morreram em um genocídio perpetrado por soldados otomanos e grupos paramilitares curdos. A combinação de deportação forçada e massacre indiscriminado removeu da Anatólia Oriental quase toda a sua população armênia. Embora as cidades de Tbilisi e Baku fossem muito mais significativas cultural, econômica e politicamente para os armênios, os nacionalistas da época viam a Anatólia Oriental como o futuro lar de um Estado armênio independente.
A perda permanente dessas terras criou um nacionalismo territorialmente desmembrado, no qual não apenas uma linguagem e tradições religiosas compartilhadas moldam a ideia nacional armênia, mas também um senso de perda e memória coletiva do genocídio. Isso alimenta, por sua vez, uma intransigência sobre Nagorno-Karabakh – muito parecido com a forma como o irredentismo israelense frequentemente invoca o medo de um segundo Holocausto.
Karabakh também é fundamental para o imaginário nacional para os azeris. Isso se deve, principalmente, aos quase 600 mil azeris que se tornaram pessoas deslocadas internamente (IDP, no acrônimo em inglês) por conta dos combates até o cessar-fogo de 1994. Enquanto alguns deslocados internos vieram de Nagorno-Karabakh, a grande maioria fugiu de sete distritos nas planícies de Karabakh, historicamente povoadas por azeris, atualmente (segundo o Azerbaijão) sob ocupação armênia. Desde o fim da última guerra, em 1994, a reivindicação desses territórios perdidos e o eventual retorno de seus residentes têm sido pilares do nacionalismo azeri.
Se isso explica como o imaginário nacionalista popular de cada país desde muito tempo vê o conflito, também precisamos entender os mecanismos que reproduzem-o hoje.
O termo “conflito congelado” é usado, frequentemente, para descrever disputas territoriais não resolvidas no mundo pós-soviético. O conflito entre Armênia e Azerbaijão por Nagorno-Karabakh não é exceção. Ainda assim, o expert em Cáucaso Sul Laurence Broers explica que “rivalidade duradoura” é uma descrição muito mais conveniente. Em suas palavras, essa descrição evita “as dicotomias de ‘guerra/paz’ e ‘conflito quente/frio’ e muda a análise, de centrada no evento da guerra, para o processo de permanência da rivalidade”. Porém, observando além de momentos pontuais e entendendo essa tensão como um processo em curso, vemos a história mais profunda da região – não apenas a experiência da integração à URSS, mas também o colapso.
A sovietização
De 1918 a 1920, Nagorno-Karabakh foi formalmente – embora isso seja discutível – administrada pela efêmera República Democrática do Azerbaijão. Na época, o território multiétnico incluía a parte montanhosa de maioria armênia, isto é, Nagorno-Karabakh (NK), e as planícies muçulmanas azeris, chamadas apenas de Karabakh. Entre maio de 1920 e maio de 1921, enquanto a Guerra Civil russa ainda ocorria, forças bolcheviques consolidaram o poder nessa última área.
A maior cidade da região montanhosa, Shusha (conhecida pelos armênios como Shushi), foi habitada por armênios e azeris até o massacre de 1920, quando milhares de armênios foram mortos ou deslocados por tropas azeris e moradores locais após uma fracassada revolta armênia. Trabalhando para contornar essas tensões, os bolcheviques fundaram dois Comitês Revolucionários em NK – um controlado pelos azeris, em Shusha, outro controlado pelos armênios e sediado na vila de Tahavard. Os comunistas azeris e armênios da região buscavam “objetivos nacionais, dessa vez dentro de uma estrutura ideológica comunista”.
Em 4 de julho de 1921, o Bureau do Partido Comunista do Cáucaso (Kavburo) se reuniu em Tbilisi e confirmou que, dada sua população armênia considerável, NK deveria ser designada como parte da Armênia, recém-controlada pelos bolcheviques. A lógica era que isso iria equilibrar as reivindicações nacionais rivais, depois que Nakhichevan, etnicamente mista, se unisse ao Azerbaijão. O líder bolchevique azeri Nariman Narimanov afirmou que declarar NK como parte da Armênia era a essência do internacionalismo proletário.
No entanto, essa decisão foi rapidamente revertida e NK foi integrada ao Azerbaijão. Havia um entendimento entre as lideranças bolcheviques de que a criação de distritos autônomos nacionalmente distintos dentro das Repúblicas da União Soviética criaria uma cooperação étnica positiva. Mesmo assim, os líderes bolcheviques também não estavam interessados em decisões que arriscassem promover secessão étnica alhures. Por esse motivo, os historiadores apontam outro fator decisivo na decisão final de unir NK ao Azerbaijão. Os bolcheviques georgianos – Stalin entre eles – acreditavam que a designação de NK para a Armênia certamente promoveria secessão étnica de armênios e azeris que povoavam a fronteira sul da Geórgia. No último minuto, graças à estatura desses no Kavburo, os bolcheviques georgianos garantiram que a decisão sobre NK fosse revertida.
Em 1923, o Comitê Central do Partido Comunista do Azerbaijão constituiu um comitê territorial que criou a Oblast Autônoma de Nagorno-Karabakh (NKAO, no acrônimo em inglês) e NK foi formalmente incorporada ao Azerbaijão Soviético como uma “Oblast Autônoma”. Esse termo se referia a unidades administrativas que mantinham um módico controle dos assuntos locais, embora estivessem sob o controle político formal da burocracia nacional da República Socialista Soviética onde se localizavam.
Pelos sessenta anos seguintes, esse arranjo se manteve em relativa paz. Sem dúvida, com o passar do tempo, as Repúblicas Socialistas Soviéticas – especialmente no sul do Cáucaso – tornaram-se mais homogêneas etnicamente. Mas um ideal soviético de maior fraternidade plurinacional e um tipo particular de cosmopolitismo soviético no sul do Cáucaso impediram a violência explosiva. O etnonacionalismo foi cooptado em estruturas estatais soviéticas específicas, impedindo-o de operar como uma ferramenta de agregação política. Além disso, o desenvolvimento de culturas nacionais específicas como peças de um todo soviético mais amplo integrou-as formalmente em um projeto compartilhado maior. Isso não era, de forma alguma ,um arranjo perfeito, mas impediu o etnonacionalismo desenfreado. O fim desse arranjo amplo desencadeou o etnonacionalismo como base da mobilização pela independência.
A dessovietização
Durante uma plenária em janeiro de 1987, o secretário-geral Mikhail Gorbachev abordou o surgimento preocupante de “tendências negativas na esfera das tensões interétnicas” na URSS – e a importância de prevenir o surgimento de “preconceitos nacionalistas ou chauvinistas”.
Ele sugeriu que era necessária uma supervisão mais centralizada das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Apesar da perspicaz observação, isso não explicava a mobilização política paradoxal dos armênios de Karabakh. Por um lado, esse desenvolvimento foi o resultado de sua designação étnico-territorial peculiar dentro do sistema soviético. Porém, isso articulou uma resolução política esquadrinhada na lógica dos ideais soviéticos e nas promessas das reformas de Gorbachev.
Para os armênios de Karabakh, ser uma maioria concisa em uma oblast autônoma etnicamente mista – mas também uma população minoritária dentro de uma República Socialista Soviética – criou uma divergência desenvolvimental entre a administração nacional e a população local. Dada sua proximidade e conexão com a República Socialista Soviética Armênia e as várias vantagens que as populações tinham ao viver como a maioria titular dentro de sua “própria” RSS nacional, os armênios de Karabakh exigiram unificação com a RSS Armênia.
A questão foi levantada intermitentemente pós-II Guerra Mundial. Porém, em fevereiro de 1988, o Conselho Supremo da NKAO solicitou formalmente que o território fosse transferido à Armênia Soviética. A transferência foi elaborada para contemplar tanto a concepção leninista de soberania nacional da constituição soviética, quanto as promessas liberalizantes das reformas da perestroika e da glasnost de Gorbachev. Nagorno-Karabakh, unida à Armênia soviética, foi imaginado como uma verdadeira materialização dos princípios soviéticos. Grandes manifestações foram realizadas em Stepanakert e Yerevan em apoio à unificação.
O Comitê Karabakh foi criado em 1988 e assumiu a liderança de facto do nascente movimento por Karabakh. Quando o Comitê começou a formalizar e divulgar as demandas pela secessão de NK junto ao Azerbaijão Soviético, a paranóia e o desconforto permearam os azeris da região. Em 22 e 23 de fevereiro de 1988, rumores se espalharam pela cidade de Askeran de que um homem azeri havia sido assassinado em Stepanakert. Os confrontos resultaram na morte de dois azeris e quase cinquenta armênios. Notícias da violência em Askeran chegaram à cidade industrial de Sumgait, ao norte de Baku, enfurecendo seus habitantes. Em 27 de fevereiro, residentes azeris de Sumgait começaram a matar e atacar seus vizinhos armênios. Em resposta a esse pogrom, os armênios em Yerevan começaram a se manifestar em números cada vez maiores. O pogrom de Sumgait impulsionou ainda mais a reivindicação de que NK fosse integrada à Armênia Soviética. Por fim, em 10 de dezembro de 1991, um referendo aprovou a independência de Nagorno-Karabakh com esmagadora maioria.
Em janeiro de 1990, uma combinação de ressentimento nacionalista e paranóia induzida por rumores desencadeou outro pogrom. Os azeris, como nos pogroms em Sumgait dois anos antes, começaram a massacrar armênios em Baku. Em 22 de janeiro, Gorbachev enviou os militares soviéticos para restaurar a ordem, levando à morte de 120 azeris. Aquele mês seria conhecidos como Janeiro Negro.
Durante a crise de Karabakh, manifestantes em Yerevan conectaram os pogroms de Sumgait e Baku diretamente com o genocídio armênio de 1915. O livro Iconography of Armenian Identity de Harutyun Marutyan apresenta fotos de slogans e faixas de Yerevan entre 1988 e 1990, mostrando como os manifestantes armênios reivindicavam uma continuidade política entre os perpetradores turcos do genocídio de 1915 e as ações azeris naquele momento. Os manifestantes insistiam que a própria sobrevivência da Armênia dependia da vitória sobre o Azerbaijão em NK, justamente porque esta era a única maneira de evitar o extermínio dos armênios que viviam lá. NK era, no imaginário armênio, a linha de frente entre o futuro e a erradicação total.
Mas os azeris se mobilizaram no sentido oposto. As massivas manifestações em Baku lideradas pelo movimento oposicionista Frente Popular retrataram a Armênia como a maior ameaça à independência e integridade territorial do Azerbaijão, independentemente da sobrevivência ou não da URSS. As manifestações em Baku invocavam que um Azerbaijão independente só poderia ser livre derrotando o inimigo armênio que tentava tomar seu território histórico.
Embora os confrontos militares tenham começado em 1988, o conflito se tornou uma guerra em grande escala em 1992. Milícias armênias, guerrilheiros azeris e vestígios do Estado soviético em colapso lutavam pelo controle da região. Milhares de civis e soldados perderam suas vidas. Cidades e vilas sofreram limpeza étnica. A desintegração das instituições soviéticas facilitou a distribuição de armas às milícias nacionalistas, visto que o valor do armamento incentivou os que tinham acesso a armas a atender à crescente demanda por poder de fogo em áreas conflituosas. Após quase setenta anos de desenvolvimento nacional guiado por princípios de cooperação multiétnica, o conflito etno-nacionalista se alastrou como se essa experiência nunca tivesse acontecido.
Combustível no fogo
Esses confrontos foram paralisados somente em 1994, com um cessar-fogo mediado pela Rússia. Mas isso não trouxe uma resolução política – em vez disso, as posições da Armênia e do Azerbaijão se tornaram mais intransigentes e duras. Hoje, interesses de forças externas, militarismo e petróleo estão alimentando o conflito.
Nas últimas semanas de combates, a Turquia foi um fator-chave. Sua atuação atende tanto aos interesses internos do presidente Recep Tayyip Erdoğan quanto da elite política azeri. Turquia e Azerbaijão compartilham laços históricos – alegando ser “uma nação, dois Estados” – devido aos laços linguísticos e culturais semelhantes. Desde o fim da URSS, a Turquia tem prometido, consistentemente, apoio ao Azerbaijão. Erdoğan afirma que a Armênia é a “maior ameaça à paz na região”. Nessa rodada específica de combates, a retórica do Estado turco tem sido particularmente belicosa, com Erdogan rejeitando movimentos em direção a um cessar-fogo.
No entanto, os laços entre os dois países são mais do que apenas retórica. Em agosto passado, Azerbaijão e Turquia realizaram exercícios militares conjuntos. Há fortes indícios de que a Turquia deixou no Azerbaijão armamento utilizado nos exercícios. O Azerbaijão admitiu abertamente o uso de drones e aviões de combates turcos nos últimos dias, que estariam diretamente envolvidos em ataques à Armênia, apesar das negativas anteriores da Turquia. Também foi verificado que mercenários da Síria apoiados pela Turquia viajaram para lutar pelo Azerbaijão.
Porém, são cruciais para a relação Azerbaijão-Turquia o gás, o petróleo e os oleodutos. Baku fornece gás e petróleo para a Turquia, Europa e Rússia por meio de uma extensa rede de infraestrutura de dutos. De fato, o importante oleoduto Baku-Tbilisi-Ceyhan (BTC) e o Gasoduto do Sul do Cáucaso (SCGP) têm trechos a poucos quilômetros dos combates em Nagorno-Karabakh. A BP, multinacional de gás e petróleo, com extensas operações no Azerbaijão, também expressou “preocupação” com a proximidade do oleoduto BTC da área do conflito. Além disso, o projeto do Gasoduto Transanatoliano (TANAP) de 6,5 bilhões de dólares, recentemente revelado, de propriedade da empresa estatal de gás do Azerbaijão, SOCAR – com uma capacidade potencial de transportar 31 bilhões de metros cúbicos de gás por ano – não só expandiu a já vasta capacidade do Azerbaijão de exportação de petróleo, mas forneceu mais seis bilhões de metros cúbicos diretamente para o mercado interno turco. O TANAP também se conecta diretamente ao Oleoduto Transadriático, uma importante rota de abastecimento para a Europa.
Em maio de 2020, a Turquia importou 62% menos gás da Rússia, já que o Azerbaijão se tornou o principal fornecedor de gás do país, e as exportações de gás russo para a Turquia caíram para os níveis mais baixos desde os anos 1990. As descobertas turcas de gás natural no Mar Negro funcionam como moeda de troca internacional com a Europa e a Rússia.
Isso tudo contrasta fortemente com a situação energética da Armênia – uma terra sem reservas de petróleo ou gás natural, quase totalmente dependente das importações da Rússia. Antes, a demanda de eletricidade da Armênia dependiam da Inter RAO, de propriedade russa, que supervisionou um aumento de 17% nas tarifas de eletricidade no verão de 2015. Isso gerou os protestos chamados de Electric Yerevan, contra o aumento da tarifa. No entanto, dada a relação tensa entre Armênia e Azerbaijão, além das contínuas tensões com a Turquia, manter relações estreitas com a Rússia é uma questão de sobrevivência.
A Rússia tem profundos laços culturais com o Azerbaijão e Armênia devido à história soviética em comum. A elite azeri prefere usar o russo e a língua também faz parte do dia a dia na Armênia. A Rússia vende armas para os dois lados e mantém laços econômicos profundos com ambos. A riqueza do petróleo do Azerbaijão cria evidentes oportunidades de negócios, enquanto a diáspora armênia em Moscou e em toda a Rússia é uma potência econômica por si só. Essa tentativa de apaziguar os dois lados explica o motivo pelo qual, apesar de Rússia e Armênia pertencerem à Organização do Tratado de Segurança Coletiva (OTSC), a Rússia adota uma abordagem bem ponderada no conflito, enquanto pressiona por um cessar-fogo. O fornecimento de gás russo à Armênia, comparado com as exportações europeias e a outros mercados é quase insignificante. A Armênia pode ser um aliado político formal, mas está longe de ser um aliado econômico relevante.
Seria um exagero ver o conflito como uma disputa por procuração entre a OTSC – liderada pela Rússia – e a OTAN. A importância das tensões locais e a falta de uma confrontação verdadeira à Rússia por parte do primeiro-ministro armênio Nikol Pashinyan desde que assumiu o poder – apesar de não ser um dos favoritos em Moscou – enfraquecem esta explicação. E, embora a Turquia seja um membro da OTAN, no máximo fará com que a Rússia vá com calma para não esquentar ainda mais a situação.
Israel também desempenhou um papel central, embora discreto, no conflito. Durante anos, o país manteve uma relação econômica, militar e de inteligência com o Azerbaijão. Não apenas o Azerbaijão é um dos principais fornecedores de petróleo e gás de Israel, mas também sua fronteira com o Irã tem sido útil para a inteligência israelense. Entre 2006 e 2019, o Azerbaijão usou sua infinita riqueza de petróleo para comprar mais de 825 milhões de dólares em armas israelenses, tornando-se um dos maiores clientes de armamentos do país. E na disputa atual, o apoio de Jerusalém a Baku é claro, com aviões de carga azeris viajando para bases militares em Israel nos últimos dias. Mesmo com os comentários tímidos do governo azeri, não resta dúvida quanto ao propósito dessas viagens. A Armênia reagiu chamando de volta seu embaixador em Israel, esfriando as já mornas relações .
A intensificação dos exercícios militares na região pode aumentar o potencial explosivo do conflito. Os exercícios militares russos “Kavkaz 2020” foram realizados no norte do Cáucaso russo entre 21 e 26 de setembro e terminaram um dia antes do início dos combates em NK. O Azerbaijão “observou”, enquanto a Armênia foi um participante direto e ativo. Além disso, a vizinha Geórgia – posicionando-se como neutra no conflito e oferecendo-se para sediar conversas entre Yerevan e Baku – realizou recentemente o exercício anual de Noble Partner, com destaque para as tropas norte-americanas marchando pelo país.
A Armênia e o Azerbaijão (bem como a vizinha Geórgia) também fazem parte da Parceria Oriental da União Europeia. Mas, com a viabilidade da própria UE cada vez mais em xeque – com suas tentativas de parecer ser um ator geopolítico tropeçando em suas tensões internas, aumentando o populismo de direita – é difícil acreditar que suas ambições expansionistas farão qualquer coisa para conter as políticas étnico-nacionais que sustentam este conflito.
Solução política
Mesmo que haja esforços para o cessar-fogo, não pode haver paz sem uma solução política. Há bravos armênios e azeris, dentre outros, pensando sobre o conflito, trabalhando em think tanks, em várias iniciativas de paz e universidades dentro e fora da região, pedindo legitimamente paz, diálogo e entendimento entre ambos os lados.
Mas a paz não é gratuita, tampouco neutra. Imaginar um futuro compartilhado no qual a guerra não apenas não existe, mas também é impensável exigirá mais do que intenções pacíficas e reconhecimento da humanidade do outro. Será preciso muito esforço para reconceituar uma política na qual armênios e azeris, na região e alhures, vejam seus futuros entrelaçados, interdependentes e a serviço de algo maior do que suas próprias identidades nacionais. Isso exige a ressuscitação de histórias compartilhadas, a exploração de um presente compartilhado e a articulação de um futuro compartilhado.
Já se passaram três décadas desde que a vida multiétnica soviética nesse canto heterogêneo do Sul do Cáucaso, com suas imperfeições menos dramáticas, foi enterrada nos escombros de casas e prédios. O experimento de 70 anos naquela irmandade internacional imposta pelo Estado foi finalmente respondido com uma violência nacionalista apocalíptica. Então, a animosidade étnico-nacional tornou-se o agente que une as instituições políticas e as identidades de Armênia e Azerbaijão recém-independentes. Sem a superação desse legado – e da institucionalização das supostas diferenças étnicas – as chances de uma paz duradoura são mínimas.
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