Santo Amaro da Purificação, no Recôncavo baiano, cidade candente da diáspora africana e da cultura brasileira. Terra de Manuel Faustino, Manuel Querino, Tia Ciata, Dona Canô e seus filhos, Assis Valente e outros. Nela, em 13 de setembro de 1915, nascia Alberto Guerreiro Ramos, filho da tradição criativa da região, que dela sairia para marcar seu nome na história do pensamento social brasileiro. Um intelectual genuinamente digno de carregar a alcunha – como lembra Edward Said, intelectual é aquele disposto a provocar dissenso e desafiar o poder, quem gera estranhamento e trafega como um exilado no seu próprio tempo. Assim foi Guerreiro Ramos, alguém que transitou por espaços políticos de destaque na sociedade brasileira da metade do século passado, mas que, com seu estilo de vida anticonvencional, nunca foi completamente um nativo, até porque nunca foi visto como tal.
De Santo Amaro, Guerreiro desaguou no Rio de Janeiro na década de 30, diplomando-se em ciências e direito pelas antigas Faculdades Nacionais de Filosofia e Direito. Nos anos 40 e 50, também no Rio, será uma das mentes efervescentes que construirão uma nova etapa do movimento negro no Brasil. Em livrarias, escolas de samba, clubes, cafés, esquinas e instituições acadêmicas, como bem relata Nei Lopes no livro Rio Negro 50, vai surgindo uma nova intelectualidade negra influenciada pelas ideias de negritude e pelo pan-africanismo revolucionário. É a cidade por onde circulam Abdias Nascimento, Haroldo Costa, Ruth de Souza e Aguinaldo Camargo, em que o Teatro Experimental do Negro desenvolve suas principais atividades e na qual se realizam as Convenções e o Congresso do Negro Brasileiro. Rompendo com a tradição anterior, expressa na Frente Negra Brasileira, essa militância tem como pressuposto o reconhecimento do valor civilizatório da herança africana e da personalidade negra.
É neste Rio insurgente, de gentes negras, que Guerreiro Ramos se consolidará como intelectual. Em meados da década de 50, torna-se professor da Escola Brasileira de Administração Pública (EBAP-FGV), membro da Comissão Nacional do Bem-estar Social, cofundador do Instituto Brasileiro de Economia, Sociologia e Política (IBESP) e diretor do Departamento de Sociologia do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB). Guerreiro foi peça central na institucionalização das ciências sociais no país, numa época na qual se buscava superar a sociologia ensaística, dos anos 30 e 40, a partir da incorporação do rigor científico e do refinamento metodológico. Em especial, reivindicava o papel de uma sociologia engajada, comprometida com a grande temática do momento: pensar os caminhos para o desenvolvimento social e democrático do Brasil.
O Brasil é negro e assim deve ser sua ciência
Neste contexto, Guerreiro era encruzilhada, com um pé lá e outro cá. Participava das principais articulações do movimento negro, ao mesmo tempo que se tornava figura de influência na renovação institucional das ciências sociais. Fazia sociologia a partir da experiência negra (o seu niger sum) e simultaneamente tinha o devir negro como questão central na investigação científica. Muito antes de se falar de decolonialidade, o baiano de Santo Amaro já afirmava que só haveria pensamento crítico no Brasil quando os nossos intelectuais deixassem de produzir uma “ciência consular”, isto é, uma cientificidade desconectada da sua realidade, que bate cabeça para conceitos, abordagens e teorias do norte global sem nenhuma dimensão crítica.
Para ele, os intelectuais brasileiros encontravam-se perdidos no academicismo colonizado, mais preocupado em agradar o mundo estrangeiro do que ver a si próprio. Aproximava-se nisso de Frantz Fanon e Neusa Santos Souza, com a crítica à ciência do espelho distorcido, na qual o subalterno se enxerga e se avalia a partir dos parâmetros do dominador.
Contra essa inautenticidade, Guerreiro argumentava em dois sentidos: primeiramente, por meio do conceito de “redução sociológica”, ele reivindicava uma espécie de contrabando crítico de ideias, em que os intelectuais periféricos deveriam se apropriar e subordinar ao elemento nacional (isto é, à concretude existencial primeira) categorias e conceitos desenvolvidos nos países centrais. Por outro lado, Guerreiro propunha uma sociologia em “mangas de camisa”, que não tivesse medo de se afirmar militante e que fosse radicalmente comprometida com a superação da condição de dependência material e intelectual – uma sociologia, portanto, capaz de entender e transformar o Brasil a partir dos seus próprios termos.
Refletindo sobre como a estrutura colonial condiciona a ciência brasileira, Guerreiro afirmava que “num país como o Brasil, colonizado por europeus, os valores mais prestigiados e, portanto, aceitos, são os do colonizador. Entre estes valores está o da brancura como símbolo do excelso, do sublime, do belo”. Antecipando em décadas os “estudos da branquidade”, o baiano apontava que o “branco”, mesmo sendo distante e minoritário na realidade existencial e demográfica do Brasil, tornava-se padrão, significando normalidade e universalidade.
Para ele, tratava-se de uma lesão comunitária, perpetuada pela academia, que alienava a sociedade brasileira de si. Para reverter esse quadro, era necessária uma rebelião epistêmica, um movimento inaugural de reinvenção do mundo baseado na assunção do negro como povo brasileiro.
Muryatan Barbosa chama essa dialética da negritude em Guerreiro de “personalismo negro”, um caminho de afirmação do negro (tese), da suspensão da brancura (antítese) e da compreensão humanística do valor objetivo e constitutivo da negritude (síntese). Ou seja, o baiano negava as teses que reduziam o negro ao lugar do folclore, do fóssil ou do recorte para realocá-lo como base interpretativa do devir brasileiro. O “problema do negro” deixa de existir e no seu lugar aparece o racismo como elemento calibrador das estruturas sociais no Brasil. Esse gesto teórico disruptivo de Guerreiro até hoje merece melhores considerações, especialmente por pensar o impacto da “raça” para além das ideias de discriminação e identidade. Neste sentido, em substituição às concepções oriundas da superioridade branca, da mestiçagem ou dos tão comuns binarismos contemporâneos, Guerreiro afirmava que negro é povo brasileiro. Isto é: a totalidade deve ser relida a partir da reabilitação positiva da sua singularidade primeira, a negritude.
Mas se o povo brasileiro é negro, o que significa esse povo? Como repensamos as categorias, análises e projetos políticos a partir dessa constatação? São perguntas que merecem uma reflexão radical e tornam urgente retornarmos a Guerreiro e a outros intelectuais negros do passado, especialmente num momento da história no qual novamente se atesta a impossibilidade da democracia sem que haja a demolição do racismo e do sistema que o sustenta.
Um reencontro com Guerreiro e o sonho da utopia brasileira
Na sua oposição à sociologia praticada no Brasil, Guerreiro não poupava adjetivos: equivocada, carente de valor e inteligência, inimiga da criação autêntica, pachola, desatualizada e “perdida na investigação de pseudoproblemas, de questiúnculas, tais como ‘aculturação’, ‘estrutura de comunidade’, ‘lusotropogicologia’, ‘sobrados e mocambos’, ou em certas mandarinagens sobre temas tratados em tese, com muita erudição e sem nenhuma urgência, necessidade ou funcionalidade”.
A acidez crítica proferida por um homem negro teria o seu preço. Foi tido como iconoclasta, excêntrico, intragável, raivoso e fora do lugar. Impressões que levariam ao ostracismo, o qual pode ser sentido até os dias de hoje. No entanto, palavras como as de Darcy Ribeiro expressam que em Guerreiro residia o que de melhor já se formulou nessas terras:
Fui amigo e até compadre de Guerreiro Ramos. Depois brigamos. Ele queria libertar todo o pesquisador social de países atrasados como o nosso das prescrições metodológicas formais. Nós todos reagimos num Congresso de 52, no Rio, a que ele respondeu com sua excelente “Cartilha”. Eu era, então, um etnólogo bizonho, metido com índios, querendo estudá-los como fósseis vivos. Florestan queria ser Merton. Guerreiro tinha toda a razão de propor uma ciência social nossa, eficaz e socialmente responsável. Exacerbou, claro, como todo pioneiro. Mas era, sem dúvida, o melhor de nós.
A história do racismo proporcionou a Darcy a oportunidade da mea culpa. Mas essa história seria implacável com Guerreiro. Inimigo da ditadura, teve seus direitos cassados pelo Ato Institucional n. 1, em 1964, quando exercia mandato de deputado federal pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB). O Instituto Superior de Estudos Brasileiro, onde era professor, seria extinto três dias depois do Golpe Militar. Era a sanha persecutória e anti-intelectual tão comum à direita brasileira. Guerreiro, que era um exilado intelectual no seu próprio país, virou um exilado político nos EUA, onde, a partir de 1966, tornou-se professor universitário. Por lá, viveu o restante da sua vida, avançando nos seus estudos sobre administração pública.
É lá que, depois de quase duas décadas longe da sua terra natal, proferiria a Clóvis Brigadão a frase “sou homem que penso o Brasil vinte e quatro horas por dia”. Mesmo longe, o Brasil não saia da sua vida e das suas reflexões. Guerreiro não voltaria a vê-lo, pois morre em 1982, em Los Angeles. O Golpe calou e exilou talvez o maior pensador brasileiro antes da ditadura. O racismo epistêmico e institucional continua silenciando as suas reflexões até os dias de hoje. Entre as dívidas que o Brasil precisa saldar com o seu passado como condição de avançar em direção a um outro futuro, uma delas é com Guerreiro Ramos. Nele está não só uma teoria com cara de Brasil – aguda, negra, crítica e de base –, mas também um projeto de soberania política voltado para as verdadeiras maiorias. Em um mundo que parece reviver antigas encruzilhadas, imaginar ao lado de quem já lidou com elas em outros momentos da história torna-se fundamental. Neste aspecto, Guerreiro foi um dos melhores.
[…] Saiba mais em: https://jacobin.com.br/2020/09/a-sociologia-militante-de-guerreiro-ramos/ […]
[…] Leia o ensaio de Marcos Queiroz em https://jacobin.com.br/2020/09/a-sociologia-militante-de-guerreiro-ramos/ […]