No dia 7 de julho deste ano, uma articulista do periódico americano Newsweek publicou uma estranha “homenagem” a Edward Said, chamando-o de “profeta da violência política nos Estados Unidos”. O texto, repleto de clichês pejorativos contra muçulmanos – embora Said viesse de uma família de cristãos protestantes – acusava o crítico literário palestino, apontado como uma “super-estrela da esquerda radical”, de “niilismo intelectual” e de “manipular os estudantes para que eles se engajassem em violência política”. O que leva a articulista da Newsweek arremeter contra Said é um incidente na fronteira entre Israel e Líbano, no ano de 2000, quando o intelectual foi fotografado arremessando uma pedra contra uma torre de vigia israelense. A pedra de Said contra Israel seria um prenúncio dos protestos confrontacionais que tomaram as ruas das grandes cidades dos Estados Unidos nos últimos tempos.
O texto da Newsweek é horroroso, mas ao mesmo tempo serve como um bom pretexto. Pensar Said como um profeta de mobilizações massivas como as do Black Lives Matter é de fato inspirador, mesmo que a sua figura não seja explicitamente reivindicada nos protestos. Há um curioso detalhe esquecido nesse evento. Desde 1991, Edward Said lutava contra uma leucemia crônica, que acabou abreviando a sua vida em 2003. Um homem enfermo, nos seus últimos anos de vida, lançando uma pedra contra uma estrutura militar de um poderoso exército de ocupação é o pretexto perfeito para falar sobre o que significava ser um intelectual para Said.
A pedra de Rosetta e o orientalismo
A trajetória de vida de Edward Said, como intelectual de origem árabe palestina, marca sua obra profundamente. Ao estudar os cânones da “literatura ocidental”, Said pode experimentar como seu espaço de “não-ocidental” era constantemente demarcado. No fundo, uma questão o inquietava: enquanto árabe, os seus pares anglo-saxões só lhe permitiram escrever sobre a cultura árabe? Esse era um mundo acadêmico em que, diante do contexto de Guerra Fria, as universidades norte-americanas viram proliferar os chamados “area studies”, ou os “estudos de área”, campos multidisciplinares que se debruçavam sobre uma região ou país estrategicamente importante para os EUA. Dessa forma, muitos intelectuais ao redor do mundo foram atraídos pelas universidades norte-americanas, tornando-se especialistas.
Said sabia que, por muitos anos, muitos intelectuais europeus e norte-americanos se sentiam seguros para falar sobre a cultura árabe, reconhecidos como especialistas no tema – os chamados “orientalistas”. Os estudos “do Oriente”, afinal de contas, eram uma tradição antiga em grandes universidades como Oxford, Cambridge, Sorbonne etc. Museus como o Museu Britânico e o Louvre incorporavam a memorabília e os artefatos dos mais diferentes povos e impérios ao redor do globo. Diante disso, o que cabia aos árabes, ao adentrarem o espaço acadêmico norte-americano, era somente falar da cultura árabe, legitimando a posição dos “especialistas”? Na esteira dessas reflexões, a questão primordial para Said era: afinal, o que permitia que o Ocidente tivesse tamanha primazia sobre os estudos do chamado “Oriente”?
Com base nessas reflexões e mergulhando na crítica literária ocidental, Said lança em 1978 a sua principal obra, O Orientalismo, uma reflexão devastadora sobre como o chamado Ocidente construiu uma noção de “Oriente” que, em última instância, serviu para construir e referendar a posição de dominação imperialista de países como Inglaterra, França e EUA. O imperialismo, por sua vez, não pode ser entendido somente em sua dimensão econômica, mas também cultural: o domínio sobre diferentes povos, a acumulação de riqueza, a espoliação de sociedades e impérios tradicionais, tudo isso veio acompanhado de uma imensa quantidade de novos “especialistas” que se davam o direito de dizer o que pensavam os chineses, os indianos, os árabes, enquanto saqueavam suas riquezas e exploravam sua mão-de-obra. Esse caráter duplo do imperialismo, econômico e cultural, pode ser visto na dominação inglesa em Bengala, já no final do século XVIII: o início do imperialismo britânico na Índia, que culminou na morte de 10 milhões de bengaleses por fome, foi marcado também pela impressionante proliferação de traduções inglesas sobre textos clássicos do hinduísmo. Dessa forma, os primeiros orientalistas que surgiram no Ocidente nasceram tendo de omitir os brutais crimes que os ingleses cometiam em abundância na Índia.
Não se trata de mero detalhe que a narrativa de Said dê ênfase na famosa pedra de Rosetta. A estela de pedra que traduzia hieróglifos das pirâmides e dos templos do Egito antigo para o grego, foi capturada pelos franceses, na conquista napoleônica na região. Com a derrota das tropas de Napoleão, o artefato foi levado para o Museu Britânico, em 1802, onde se encontra até hoje. Para Said, o roubo dessa relíquia foi um divisor de águas, pois permitiu que, por meio do saque e da pilhagem, o Ocidente pudesse estudar o Oriente como um “objeto”, definindo-o de forma restrita e singular, segundo seus próprios interesses. No final das contas, era como se agora o Ocidente pudesse contar a própria história desse outro não-ocidental, dizer como era sua história, sua cultura, sua língua e seus costumes. Em outras palavras, não eram apenas as riquezas que estavam sendo saqueadas, mas a própria história dos povos do chamado “Oriente”.
Dessa forma, o século XIX viu as universidades europeias se tornaram centro de produção do que Said chamou de “orientalismo”, o estudo sistemático sobre o outro “Oriental”, convertido agora em objeto da ciência moderna europeia. A produção desse discurso era tanto causa como efeito do imperialismo ao longo dos séculos XIX e XX, na medida em que legitimava e validava ideologicamente o papel dominante das potências capitalistas ocidentais.
Ao afirmar que o “Oriente” é uma construção ocidental amparada na dominação imperialista – e que tem como propósito justamente embasar um campo de estudos cujo enfoque era legitimar essa relação – Said escandalizou parte do mundo acadêmico anglófono. Para muitos deles, era inaceitável que seu “amor” pelo saber sobre as sociedades e culturas do “exótico Oriente” pudesse ser questionado. Por trás dessa sensibilidade afetada, estava a recusa em reconhecer, de onde se falava sobre o outro, ou dito de outra maneira: de reconhecer privilégios, omissões e até mesmo a cumplicidade com os crimes do imperialismo. A recusa em aceitar que o saque das metrópoles à história das colônias havia sido determinante na construção de todo um campo de conhecimento era uma prova cabal do quanto o argumento de Said foi certeiro.
As pedras dos exilados
Se a atividade intelectual exigia que os sujeitos tomassem partido e indicassem de onde falavam (sem usar de mistificações como “amor” ou “neutralidade”), a pergunta que os críticos de Said fizeram era justamente de onde falava esse intelectual, nascido na Palestina, mas que viveu boa parte da sua vida nos EUA. A resposta para a pergunta é suficiente para nos fazer pensar sobre algo crucial na obra de Edward Said, que sempre se reconheceu como um exilado. Ao nascer em Jerusalém antes da criação do Estado de Israel, passou parte de sua infância entre Egito e Palestina até 1951, quando se muda para os EUA. Said nunca deixou de reafirmar sua condição de exilado – em especial em sua obra de caráter autobiográfico, Reflexões sobre o exílio. Sua formação acadêmica, em instituições onde dominava a perspectiva anglo-saxã, não fez dele um inglês ou um norte-americano. No final das contas, sempre se reconheceu como árabe, experimentando uma espécie de antagonismo com seus professores.
Estudando no Egito, Said refletiu sobre sua dependência da educação dada pelo já moribundo império britânico – no que ecoava sempre a máxima chauvinista de Thomas Macaulay, que dizia que “uma única prateleira de uma biblioteca inglesa tem muito mais valor do que toda a literatura indiana e árabe”. Essa formação intelectual, movida pelo sentimento de estar sempre “fora do lugar”, o tornou um intelectual público capaz de reafirmar sempre o seu não-pertencimento – em especial a partir de 1967, quando passou a criticar abertamente a cobertura da imprensa norte-americana às guerras árabe-israelenses.
A postura política pública o aproximou da Organização para a Libertação da Palestina (OLP), reafirmando assim seu compromisso com a independência palestina. Said considerava que a própria criação de Israel, movida pelo sionismo de Theodor Herzl, precisava ser repensada. Como expresso em seu livro A Questão da Palestina, defendia uma solução binacional para o conflito árabe-israelense. O reconhecimento de duas nacionalidades no mesmo território, seria a única forma de conceber um Estado verdadeiramente secular na região, capaz de alcançar uma real democracia.
A militância política de Said pela causa palestina e pela necessidade da solução binacional fez com que se envolvesse diretamente com partidos e instituições palestinas nos anos 1970 e 1980. Foi eleito membro independente do Conselho Nacional Palestino em 1977 e manteve sua posição até 1991, quando foi diagnosticado com leucemia. Defendeu a Primeira Intifada em todas as suas manifestações públicas e criticou duramente as representações sobre o Islã e o mundo árabe que emergiram na mídia norte-americana, em especial após 1967 e os acordos de Camp David. Para Said, a luta pela liberdade palestina exigia um compromisso político de um intelectual que, mesmo exilado, sentia a obrigação política de posicionar-se em qualquer espaço que ocupasse.
Em 1992, frente às negociações para os Acordos de Oslo, anunciou-se uma ruptura de Edward Said com a OLP. Sua objeção derivava da posição a favor de um Estado bi-nacional. O efeito, contudo, foi nulo: os acordos foram assinados e Said tornou-se persona non grata pela Autoridade Palestina, chegando a ter a venda de seus livros temporariamente banida em território palestino. O exílio seguiu, portanto, sendo uma constante em sua trajetória de intelectual e militante.
Da perda às novas pedras
A partida precoce de Said nos obriga a retomar sua obra. Vários de seus livros foram traduzidos no Brasil, mas muitos dos seus ensaios tardios ainda não receberam atenção por aqui. Foi um intelectual que até nos últimos anos de vida produziu incansavelmente. A sua luta pela Palestina foi registrada em diversos livros e artigos, assim como a paixão pela música e literatura. São elementos cruciais para entender que tipo de intelectual Said procurou encarnar: alguém engajado com um projeto contra-hegemônico até as últimas consequências.
Said já não estava vivo para ver George W. Bush levar a “guerra ao terror” para o Iraque, dando continuidade à obra de destruição iniciada por Bush pai. A partir de 2004, os livros e artigos de Said passaram a ganhar mais destaque na imprensa, mas gradualmente foram esquecidos de novo. Suas teses, infelizmente, seguem vivas. As chamadas “democracias liberais” nunca abandonaram os vícios orientalistas, alimentados pela propaganda imperialista, parte de um esforço de pilhagem global para acesso a petróleo e gás natural barato. Os estereótipos orientalistas continuaram se avolumando nos países capitalistas ocidentais.
É curioso que um dos críticos de Said, o célebre orientalista britânico, Bernard Lewis, o acusasse de “politizar” os estudos sobre o Oriente Médio. Possivelmente essa acusação daria orgulho a esse intelectual palestino em constante exílio. Said ousou perguntar para os saberes instituídos dos grandes impérios: o que os legitimava a falar sobre o outro? A simbólica pedra de Said contra a máquina de guerra colonialista israelense não é, portanto, nada menos do que uma manifestação de uma intelectualidade que transcendia os limites da academia e não aceitava os “modos de dominação inerentes” a ela. Que as classes dominantes considerem essa pedra tão perigosa a ponto de, décadas depois, encontrá-la refletida na mobilização insurgente da juventude que toma as ruas e derruba estátuas de antigos senhores de escravos, só dá mais valor ao ato insubmisso de Edward Said. Quando se compara um intelectual que, já no fim da vida, arremessa uma pedra em protesto à violência da ocupação contra o povo palestino, com movimentos de massas como o Black Lives Matter, que se levantam contra o racismo e o sumpremacismo branco, vemos a potência de um pensamento a serviço da emancipação. O vigor de um intelectual não reside apenas em suas palavras. Afinal, parafraseando o poeta, na luta de classes vale tudo: poemas, paus… e pedras.
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