O bispo vermelho. Deste modo também era conhecido Dom Pedro Casaldáliga – por seus inimigos. Não o chamavam assim fazendo referência à púrpura de sua condição de prelado ou à sola de seus pés descalços que pisavam a brasa terra de São Félix do Araguaia, mas em razão de sua condição de defensor intransigente dos direitos dos povos indígenas, dos pequenos agricultores e de todas as classes excluídas e marginalizadas. Dom Pedro, falecido recentemente, que ostentava um retrato de Ernesto Che Guevara na parede de sua casa, foi um bispo político, pois a política, dizia ele, era tudo, ainda que nem tudo fosse política. Com sua atuação pastoral, revolucionária, podemos dizer, Dom Pedro deu corpo – e também foi corpo – à teologia da libertação.
Teologia da libertação que foi “acusada” desde os seus inícios, pelas alas conservadoras do cristianismo, de ser um marxismo disfarçado de teologia, um “cavalo de Tróia” de revoluções comunistas – ou, em outraspalavras, de ter Karl Marx como sua fonte inspiradora primeira e principal, em vez de Jesus Cristo. O teólogo brasileiro Leonardo Boff, um dos iniciadores e maiores expoentes da corrente, rebate dizendo que Marx “não foi pai nem padrinho da Teologia da libertação”. Sem dúvida isso é correto.
A teologia da libertação surgiu na América Latina em meados dos anos 1960, em face à realidade de miséria que os povos latino-americanos se encontravam, procurou compreender o que tal realidade tinha a dizer à fé cristã que a interpelava, e como essa fé poderia, por sua vez, dar resposta a essa in-condição, para usar um termo do filósofo Emmanuel Levinas, do povo e do proletariado. A reflexão teológica encontrou terreno fecundo em meio à vida de fé que se vivenciava nas Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), compostas pelas populações humildes das periferias e dos cantões esquecidos da América Latina. Nessas comunidades, gente simples, empobrecida de todas maneiras, se ancorava naquilo que o capital não podia privatizar: sua fé – fé que, se de um lado, poderia ser “expressão de sua miséria real”, mas por outro lado, como o próprio Marx formulou no seu tempo, era protesto contra essa mesma miséria.
Nos círculos bíblicos, em leitura orante, os pobres tinham contato com um Jesus que, assim como eles, não tinha onde repousar a cabeça. Liam esse Jesus denunciando que os “chefes das nações” oprimiam e dominavam, mas que entre eles “não deveria ser assim”, e ensinava-lhes a partilha e a comunhão. O Evangelho das CEBs identificava a injustiça e a miséria vivida na própria carne pelo povo que o rezava, e propunha ao povo humilde que se organizasse em outra ordem para além da dominação, efetivando um reino de justiça onde não haveria miséria e fome, “nem pobres nem ricos”. Os teólogos da libertação pregavam um evangelho que pudesse auxiliar o povo a sair do seu estado de pobreza e humilhação, uma condição, ou “in-condição” realmente, ofensiva à dignidade humana e, portanto, ofensiva ao Altíssimo.
Filiando-se a uma antiga tradição que vê na teologia , antes de tudo, uma “práxis”, ou seja, uma ciência orientada ao agir, guiada por uma ética de consequências eminentemente práticas, e não apenas uma doutrina “especulativa”, a Teologia da Libertação se direcionou às ciências sociais críticas da América Latina a fim de realizar adequadamente uma avaliação da realidade social do continente, e deste modo construir seu discurso com uma base sólida, se dirigindo aos problemas reais. O objetivo declarado era escapar da armadilha que aprisionava o discurso religioso em uma “discussão bizantina”, que não se conectava à vida concreta do povo pobre – ao seu sofrimentos e aos caminhos para sua libertação.
Foi por essa porta que o marxismo entrou no discurso teológico: para servir como subsídio e como instrumental analítico. O marxismo nunca foi adotado in totum pelos teólogos e teólogas da libertação, não foi adotado “enquanto filosofia”, como eles próprios costumavam dizer. Marx servia não como fonte de uma visão de mundo completa, mas apenas instrumentalmente mobilizado para uma teoria social cristã, a serviço de uma missão ética. Como observa Enrique Dussel, um certo marxismo foi adotado e de certas maneiras. Alguns desses teólogos deram um enfoque mais “classista”, outros mais “populistas”. Uns se aproximaram mais da corrente francesa, outros da italiana ou alemã. A influência francesa foi a mais destacada, uma vez que vários teólogos da primeira geração realizaram seus estudos na França e na Bélgica, e foi durante esse período que tiveram o primeiro contato com o marxismo. Uns se utilizavam do marxismo esporadicamente, e de modo exclusivamente instrumental, como foi o caso dos irmãos Boff; outros, de modo mais global e orgânico, como Dussel e Franz Hinkelammert.
É a teoria marxista da dependência que será compartilhada por praticamente todos os teólogos e teólogas da libertação. Desde muito cedo terão contato com a obra de Theotônio dos Santos, Orlando Fals Borba, Fernando Henrique Cardoso, Vânia Bambirra e Andre Gunder Frank. Foi essa abordagem marxista que lhes permitiu romper com o desenvolvimentismo e compreender o empobrecimento estrutural de suas economias periféricas. O marxismo latino-americano, herdeiro da terceira Internacional, também foi uma influência marcante para Fidel Castro, Che Guevara, Mariátegui e Sánchez Vázquez – todos estes muito presentes, por exemplo, na obra seminal de Gustavo Gutiérrez, Teologia da Libertação: perspectivas, de 1971.
Uma das contribuições importantes que o marxismo deu à teologia da libertação foi a noção de fetichismo e uma crítica antifetichista. Se Marx havia uma vez retirado da esfera da crítica da religião uma metáfora para a sua crítica da economia política, a Teologia da Libertação pegou emprestada a noção já econômica para fazer sua crítica teológica. Com ela pode descortinar os pressupostos teológicos fetichizados do capital – como fez Hugo Assman e Franz Hinkelammert no livro A idolatria do mercado, de 1989. Na verdade, com ela a Teologia da Libertação retomava a uma antiga tradição profética bíblica que identificava os falsos deuses como aqueles que exigiam sacrifícios humanos: deuses que não davam vida, mas a retiravam – exatamente como o capital, que Marx compara com um vampiro que suga o sangue do pobre e do trabalhador. O próprio Marx, no terceiro livro d´O Capital, quem chega mesmo a usar o nome de um falso deus presente nas escrituras – que exigia sacrifícios humanos – para denominar o capital: Moloch.
A afinidade eletiva
Michael Löwy, em “A jaula de aço” e outras obras, servindo-se do material categorial weberiano, chama de “afinidade eletiva” essa relação próxima entre marxismo e Teologia da Libertação em razão da “afinidade negativa” de certa tradição católica com respeito ao capitalismo. Desde que o capitalismo começou a se tornar um sistema econômico dominante, houve vozes no catolicismo que expressaram a incompatibilidade deste com o ethos cristão católico. Já havia, portanto, no catolicismo uma tradição anticapitalista que nunca saiu de cena, muito embora, com o passar do tempo, tenha se tornando cada vez mais marginal, conforme a institucionalidade da Igreja se adequava aos novos tempos de hegemonia do capital. Essa afinidade eletiva entre o “cristianismo da libertação” – como Löwy denomina não apenas a teologia da libertação, mas o conjunto da tradição eclesial popular – e o marxismo se expressa em seis pontos de convergência: (i) a crítica do individualismo, (ii) a injustiça como ponto central da denúncia doutrinária, (iii) a visão universalista, (iv) a concepção de sociedade centrada no comum, (v) a crítica ao capitalismo (vi) e a esperança na transformação social.
Uma afinidade entre as correntes, então, foi ver “o mal” no mundo não em termos individuais, mas em termos coletivos, sociais. Em razão disso, a Teologia da Libertação sempre interpretou o pecado também em termos sociais, e não exclusivamente em termos individuais, sem ênfase “moralista”. O paradigma do pecado para a Teologia da Libertação é o homicídio, a morte, o roubo da vida do outro (como Marx chama a acumulação primitiva de “pecado original”). Assim, se há sistemas e estruturas que produzem e reproduzem a morte, então, a situação de miséria das massas empobrecidas, a fome, isso é, uma realidade detestada por Deus, não é fruto de uma falta moral do pobre, por não “se esforçar” o bastante, nem mesmo do rico, por não ser caridoso o suficiente.
O capitalismo é condenado por ser um sistema que subjuga seres humanos, que separa os homens entre os que detêm os meios de reprodução da vida e os que não têm, e assim retira a vida de uns para transferi-la a outros. O trabalho vivo de uns serve para alimentar a acumulação de outros, por meio de um mecanismo parasitário, vampiresco, demoníaco – por meio do mais-valor, vida humana objetivada e alienada, ou seja, roubada. Nisso os teólogos da libertação viam uma repetição da condição do povo hebreu escravizado no Egito: um povo sendo explorado e dominado. Como na narrativa do êxodo, o que Deus exige intransigentemente é a libertação do povo. Não basta apenas mudar as pessoas no comando, reformar o sistema de dominação para torná-lo mais suportável. É preciso mudar o sistema inteiro – durrubá-lo –, ir para outra terra: o socialismo.
Com base no compartilhamento dessas concepções comuns, e deixando de lado diferenças “metafísicas”, cristãos filiados à Teologia da Libertação e marxistas latino-americanos produziram uma rede de alianças de luta que entrou para a história como, talvez, uma das mais inesperadas – e frutífera.
Alianças na América Latina
Em razão de certas passagens da obra de Marx – como a célebre, e frequentemente mal-interpretada, “a religião é o ópio do povo” – o posicionamento padrão dos marxistas sobre o fenômeno religioso sempre teve algo de “alérgico”, quando não de abertamente hostil. Uma revolução socialista, porém, impulsionou a aliança entre socialistas e cristãos na América Latina. A Revolução Cubana foi o acontecimento que despertou teólogos e demais cristãos progressistas latino-americanos para a necessidade de transformação social da sociedade.
No Brasil, essa aliança entre cristãos e marxistas encontrou lugar no combate à ditadura militar. Vários foram os religiosos e leigos cristãos, do cristianismo da libertação, que se engajaram na resistência à ditadura ao lado de revolucionários socialistas, de diversos modos, inclusive no apoio à luta armada. E os socialistas não demoraram a reconhecer esses cristãos militantes como aliados. Carlos Marighella, líder da Ação Libertadora Nacional (ALN), escreveu em seu Manual do guerrilheiro urbano, publicado meses antes de seu assassinato:
Os homens da igreja, isto é, aqueles ministros ou sacerdotes de várias hierarquias e denominações, representam um setor que tem habilidade especial para comunicar-se com o povo, particularmente os trabalhadores, camponeses, e a mulher brasileira. O sacerdote que é um guerrilheiro urbano é um ingrediente poderoso na guerra revolucionária brasileira, e constituem uma arma poderosa contra o poder militar e o imperialismo norte-americano.
Marighella se referia à sua própria experiência: a ALN mantinha boa relação com os frades da Ordem dos Pregadores (dominicanos). Com o auxílio destes, recolhia doações e mandava para fora do país militantes que precisavam de refúgio político. Infelizmente, o assassinato de Marighella, em meio a essa aliança, levou os frades a serem presos e torturados – entre eles frei Tito de Alencar Lima, que acabou cometendo suicídio anos depois assombrado pelo trauma das torturas.
Na Colômbia se destaca a figura emblemática do padre Camilo Torres, que ingressou no Exército de Libertação Nacional (ELN) como guerrilheiro, e foi morto em combate em fevereiro de 1966. Um ano antes, Camilo Torres havia publicado La revolución, imperativo cristiano, onde define a essência do apostolado cristão como caridade, enfatizando que esta deve ser “eficaz”, e a caridade eficaz é a que trabalha por justiça. Após uma análise da situação política e econômica das nações latino-americanas, padre Camilo se convence de que “nos países subdesenvolvidos, as mudanças de estrutura não se produzirão sem pressão da classe popular. […] [e] a revolução violenta é uma alternativa bastante provável”, concluindo que:
Buscar o planejamento econômico autoritativo em países indigentes é, em geral, uma obrigação para o cristão. Esse planejamento é uma condição para a eficácia no autêntico serviço às maiorias e, portanto, é uma condição da caridade nesses países.
Em sua “Mensagem aos Cristãos”, de 1965, Camilo Torres conclui que a revolução é o caminho para “tirar o poder das minorias privilegiadas para dá-lo às maiorias pobres” e a forma mais eficaz de pôr em prática o principal do catolicismo que é o “amor ao próximo”:
A Revolução, portanto, é a forma de conseguir um governo que supra a necessidade de comer dos famintos, que vista os desnudos, que ensine aos que não sabem, que cumpra com as obras de caridade, de amor ao próximo, não somente de forma ocasional e transitória, não somente para uns poucos, mas, para a maioria de nossos próximos. Por isso a Revolução não somente é permitida como é obrigatória para os cristãos que veem nela a única maneira eficaz e ampla de realizar o amor para todos.
Cristianismo e Revolução – não há contradição
Outro caso especial da convergência entre Teologia da Libertação e marxismo se deu na Revolução Sandinista. Foi com o terremoto ocorrido em 1972 em Manágua que a aproximação entre lideranças religiosas adeptas da Teologia da Libertação e os sandinistas se iniciou. O terremoto destruiu parte da cidade e estima-se que tenha tirado a vida de mais de 10 mil pessoas, deixando outras mais de 20 mil feridas. Diante do descaso do governo de Somoza, sob suspeita de desvio das ajudas internacionais, e com a crise social que se abateu logo depois com os desabrigados e o desemprego, a Frente Sandinista se articulou com as CEBs, que estavam presentes nas comunidades, para atender às necessidades dos milhares de atingidos pelo terremoto. Ali nasceu uma aliança que viria a transformar a história da Nicarágua, pois, possibilitou a vitória da revolução em 1979. Vários sacerdotes católicos, como os irmãos Fernando e Ernesto Cardenal, Uriel Molina, Miguel d’Escoto, participaram ativamente do processo revolucionário, não somente na luta de insurreição contra Somoza, como também no governo que veio com o triunfo da revolução. Escoto foi ministro das Relações Exteriores e Ernesto Cardenal ministro da Cultura.
No entanto, a vitória também deu ensejo a outras contradições. Já governo, em 1980, e havendo uma campanha articulada por grupos conservadores da Igreja com a intenção de desgastar o apoio dos cristãos à revolução, a FSLN publicou uma declaração, El FSLN y la religión, na qual explicitava a posição da frente revolucionária quanto à religião e à participação de cristãos na revolução:
Há autores que afirmam que a religião é um mecanismo de alienação dos homens, que serve para justificar a exploração de uma classe sobre outra. Esta afirmação, sem dúvida, tem um valor histórico na medida em que em distintas épocas a religião serviu de suporte teórico à dominação política. Basta o papel desempenhados pelos missionários cristãos no processo de domínio e de colonização dos povos indígenas. No entanto, nós sandinistas afirmamos que nossa experiência demonstra que quando os cristãos, apoiando-se em sua fé, são capazes de responder às necessidades do povo e da história, suas próprias convicções religiosas os impulsionam à militância revolucionária. Nossa experiência nos demonstra sim que é possível ser crente e ao mesmo tempo um revolucionário consequente, e que não há contradição intransponível entre ambas as coisas.
“Entre cristianismo e revolução, não há contradição” – era a máxima proclamada à época. E isso é verdade. O “poeta da revolução”, Ernesto Cardenal, falecido no começo desse ano e ao longo de sua vida um dos mais destacados defensores da Teologia da Libertação, costumava dizer que foi o evangelho que o radicalizou politicamente: “Todos os domingos, na missa, discutíamos o evangelho com os camponeses, em diálogo, e eles com admirável simplicidade e profundidade teológica começaram a entender a essência da mensagem do evangelho: o anúncio do reino de Deus. Ou seja: o estabelecimento na terra de uma sociedade justa, sem exploradores ou explorados, com todos os bens em comum, como viviam os primeiros cristãos”.
Se entre cristianismo e revolução não havia contradição, entre a institucionalidade da Igreja e o governo revolucionário sandinista de fato houve. O sandinismo da revolução nunca conseguiu estabelecer relações estáveis e tranquilas com a cúpula da Igreja, enquanto ao mesmo tempo mantinha sacerdotes da Teologia da Libertação em importantes posições políticas – e por essa razão tanto d´Escoto quanto Cardenal foram punidos pelo Vaticano com “suspensão a divinis”, só levantada recentemente pelo Papa Francisco.
Marx camarada de Cristo
O pedagogo Paulo Freire, em uma de suas últimas entrevistas, lembrou que chegou a Marx por ser à época “camarada de Cristo”: “quanto mais li Marx, tanto mais eu encontrei uma certa fundamentação objetiva para continuar camarada de Cristo”. Marx não foi pai nem padrinho da teologia libertação, mas nunca deixou de ser um irmão – e entre irmãos não faltam desavenças. Aos marxistas, vale a observação do próprio Marx de que a religião “é o suspiro da criatura oprimida”. Aos teólogos da libertação, vale a recomendação de Enrique Dussel de que “é preciso ler Marx não para ser marxista, mas para não ser ingênuo”.
Ao final da década de 70, Ernesto Cardenal anunciava que estava surgindo na América Latina algo que era novo no mundo: “cristãos e marxistas estão se unindo para fazer a revolução” – e que depois dessa experiência nem o cristianismo nem o marxismo voltariam a ser os mesmos. A articulação entre marxismo e Teologia da Libertação e a luta conjunta de cristãos com marxistas produziram um capítulo importante da história latino-americana e, por que não dizê-lo, da história mundial. Cabe a nós, hoje, honrar e dar sequência à memória dos companheiros e companheiras que construíram a sua unidade no amor ao povo e no protesto contra a miséria.
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