Press "Enter" to skip to content
BRT lotado na zona oeste do Rio em 18 de março. | Foto de Roberto Moreyra / Agência O Globo.

Os limites do antirracismo liberal

“Presente de grego, né? Cavalo de Troia, nem tudo que brilha? Não é relíquia nem joia!”
(Racionais MC´s)

A fantasia mais cara ao capitalismo é a sensação de poder pelo acúmulo de dinheiro. É claro que se trata de uma fantasia: o dinheiro ao ser acumulado serve ao capital, e tem nele a sua finalidade. O indivíduo serve a essa acumulação, a personifica. Abandonemos, entretanto, a noção vulgar de que fantasias não produzem realidades. A fantasia gerada pela posse de dinheiro está ligada à crença de que a realização do consumo dá ao indivíduo a plena satisfação do desejo – e a felicidade possível, neste mundo real, no qual o dinheiro é quem manda. É, portanto, uma fantasia de poder que produz realidades. E ao fazê-lo impulsiona o necessário automatismo do movimento de acumulação capitalista que repousa sobre mercadoria, com suas manhas teológicas e metafísicas. 

Dinheiro é poder. Como observa Marx, o indivíduo carrega no bolso seu poder social e seu nexo com a sociedade. É o mesmo Marx que salienta, no entanto, que o único sujeito genuíno do processo é o próprio capital, que converte seu portador em mero suporte de uma reprodução expansiva. O paradoxo é que até o indivíduo capitalista é ele também subordinado ao movimento obsessivo, enlouquecido, do capital – com a vantagem, nada desprezível, de que ao contrário do trabalhador ao menos usufrui da riqueza produzida no processo.

O acesso a essa riqueza tem sem dúvida seus prazeres, mas não significa, porém, que o capitalista também não seja mutilado em suas possibilidades de auto-desenvolvimento, uma vez que está obrigado, sob a ameaça de perder o estatuto privilegiado de capitalista, de se submeter às tarefas requisitadas para a vitalidade de seu próprio capital: lidar com a concorrência, observar os movimentos globais das bolsas, tornar-se um perspicaz rentista, etc. O capitalista, portanto, é também dominado pelo impulso do capital. Para dizer como Herbert Marcuse: a sociedade da mercadoria é uma sociedade inteiramente administrada pelas formas da realização da mercadoria.

No interior dessa sociedade, é natural que aqueles que habitam as áreas de exclusão, condenados ao sub-consumo no mundo do consumo, passam a entender essa pulsão por dinheiro como algo “melhor” do que a vida miserável que levam. Não ter dinheiro é não ter poder. É preciso observar também, no entanto, como a forma do discurso que reforça tal pulsão opera no interior da estrutura de uma sociedade racializada (e colonialista), atravessada por uma política de controle sócio-racial. Bastaria assistir qualquer jornal matinal brasileiro para ver – para além do assassinato cotidiano de jovens negros pela polícia – como a vida de milhares de brasileiros abaixo da linha da pobreza deixa explícita que a diferença entre as classes se acentua com a marcação racial.

Armadilhas da identidade

A identidade é um processo de organização simbólica que estrutura o Ego e participa da tomada de consciência que o indivíduo tem de Si, é o que Freud e toda a psicanálise acabou descobrindo. A identificação do Eu – o processo primário de construção simbólica da identidade – marca-se por um discurso: uma linguagem que, com relação às sentenças que produz, precisa se justificar meta-linguisticamente, isto é, prestando contas com o entorno social e suas formas de delimitação dos significados discursivos organizados historicamente. 

O que é ser negro? O que é ser branco? O que é ser latino nos EUA? Palestino em Jerusalém? As respostas são dadas por um discurso que ajuda o indivíduo marcado por essas identificações a simbolizar sua identidade. Uma lição útil da psicanálise é que o que caracteriza a fundamentação de um discurso é o significante que ele representa, não o sujeito concreto que o carrega. Por isso, não se trata de se livrar do capitalista enquanto indivíduo, mas da forma que sustenta o capital, isso é, do modo reprodução social como um todo. Por outro lado, não se trata de ignorar a identidade forjada por esse discurso, mas de atravessá-la. 

Se a fundamentação social também se baseia no discurso formatado pela prática material da organização da vida, isso nos ajuda a entender outra frase famosa do velho Marx: “As ideias da classe dominante são, em cada época, as ideias dominantes, isto é, a classe que é a força material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, sua força espiritual dominante.” 

O problema de acatar o discurso da ordem legitimador da exploração capitalista é que tal ordem se mantém por meio de imensas desigualdades, e precisa reproduzi-las continuamente – violentamente – para continuar existindo em relativa normalidade. Esse é o limite do antirracismo de moda propagado pela mídia. Até onde esse antirracismo consegue ir? E até onde deveria ir o nosso?

O que vemos agora é que o sonho liberal, vendido como um discurso de liberdade, de uma sociedade equilibrada e inclusiva, capaz de atenuar a luta de classes e administrar com tranquilidade os conflitos sociais, fracassou espetacularmente por toda a parte. A desigualdade, necessária para a reprodução do capital, exige a construção violenta de diferenças excludentes. Para proteger essa desigualdade se levantam fronteiras e se mobiliza o medo. Na raiz dessa desigualdade constitutiva de uma sociedade de classes encontra-se o processo social de identificação para a demarcação dos corpos e a prática necessária, como lembra Achille Mbembe, de gestão e administração da necropolítica, da identificação dos que podem ser mortos ou deixados para trás. 

Na vida administrada pelas formas do capitalismo, que são promovidas pelo discurso liberal, é muito comum chamar de “progressista” a inclusão de pessoas marcadas pela racialidade por meio do consumo. É preciso pensar que esse antirracismo estruturado pelos limites da vida capitalista pode funcionar para alguns, mas é extremamente limitado.

O fato cada vez mais evidente é que a dinâmica capitalista já não é capaz de absorver a massa de despossuídos que não têm nada para vender além da própria força de trabalho. Cresce uma população excedente global, jogada de um lado para o outro como desempregados, refugiados, ou imigrantes ilegais. Trata-se exatamente do que Mbembe chamou de “devir negro do mundo”: um exército de reserva gigantesco – definido por sua aparência física, em sua escolha religiosa ou em sua nacionalidade, para controle estatal – que se torna um “problema de polícia”.

O perigo é que por trás da fachada “progressista” e “liberalizante” das fórmulas inclusivas de consumo avança um processo de definição e divisão que reforça a gramática neoliberal: o processo de identificação dos corpos, de crescente limitação à identidade. A rápida ascensão de um tipo de indivíduo essencialmente limitado, e preso, ao modo de sociabilidade da mercadoria é a marca distintiva dessa oferta de inclusão no mercado e seu discurso que impregna a vida comum. 

Esse processo de neoliberalização da vida espiritual de uma época, que favorece o narcisismo, tomou conta também da esquerda liberal, com resultados que seus apologistas, ingênuos ou mal-intencionados, não puderam antecipar. Tais condições neoliberalizantes produziram uma pulverização de demandas e lugares demarcados por pautas performativas. Uma pós-política espetacular, individualizante, fragmentária, que cria um solo fértil para a emergência de políticas de exceção da mais perigosa qualidade. Aliás, do Brasil aos EUA, cruzando países bálticos que já homenageiam membros da SS hitlerista, é o que se vê. 

A ordem liberal suporta com tranquilidade os espaços racializados para controle e demarcação. A inclusão no mercado não pode fornecer respostas efetivas contra o racismo. 

O discurso que fomenta essa estrutura simbólica, e domina o imaginário geral da política reduzida aos limites proposto por essa forma neoliberal, joga os indivíduos na busca por uma identidade imóvel, de um lugar fixo essencializado, renovando assim o decrépito pensamento de identidade nacional, cultural, étnico e religioso. Reativou-se até a própria noção de raça superior – que, a bem da verdade, nunca saiu de moda – e a exclusão que promove.

Nas ruínas do capitalismo tardio, o pressuposto da noção de raça, da “nossa identidade”, se ergue para eliminar, em nome da sua diferença, a própria diferença que lhe é alheia. E assim, se uma identidade mantém uma relação que não é a da partilha com outra, se fecha em si mesma. A velha Europa, ultra-identitária, conhece bem essa regra. Noutros termos, quando a identidade não se vê implicada por essa Outra identidade, que fornece uma negação ao seu Eu, não alcança a posição de sujeito, pois tornar-se sujeito é justamente saber que as diferenças fundamentais entre o Eu e o Outro são aquilo que nos formam, e, que, a identidade é uma travessia, não algo em que se possa permanecer. Somos múltiplas identidades que podem nos determinar, mas que não podem nos definir porque a liberdade de atravessar pelas encruzilhadas dessas identidades é aquilo que nos torna Sujeitos. 

Acreditar-se não dilacerado pela diferença no espaço mundo/outro é se marcar totalmente pela diferença, porque não se sai do tensionamento da negação. É nesse sentido que a consciência do racista e do fascista são unitárias: ambas precisam eliminar a diferença, a contradição, a negação à sua fé, para se sentirem completas. 

Por um antirracismo que vá às raízes

O processo de produção e reprodução do capital necessita da desigualdade para o seu funcionamento. A desigualdade geral no mundo do trabalho atual está implicada no espaço do mercado, na forma mesma de seu funcionamento. Enxergar nesse espaço uma possibilidade de superação dos processos racialistas é uma ilusão: a desigualdade operada no interior do processo de reprodução do capital impõe a construção de diferenças controláveis e assépticas que reforçam seu movimento.  

Se nosso antirracismo for conivente com essa forma, se acreditarmos que só iremos até aí, não seremos antirracistas o bastante porque manteremos intocados o significante raça que dá sustentação a ordem excludente e desigual do capitalismo. É preciso ultrapassar esses limites, estar à altura da encruzilhada histórica em que estamos e atravessarmos o caminho rumo à uma política de verdadeira emancipação universal na qual as diferenças não sejam marcadores de desigualdade sociais e atendam por uma forma de administração dos corpos. Silvío Almeida deu a letra: ser antirracista é incompatível com ser defensor da ordem que impera no mundo nesse momento.

Cierre

Arquivado como

Published in América do Sul, Antifascismo, Capital and Política

Be First to Comment

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado.

DIGITE SEU E-MAIL PARA RECEBER NOSSA NEWSLETTER

Cierre