Eleições roubadas, infraestrutura de votação decrépita, leis draconianas de registro. Os ataques recentes ao direito ao voto nos Estados Unidos parecem consequência de puro partidarismo – o desespero de um partido minoritário, utilizando qualquer meio necessário para manter o poder político. Porém, as tentativas descaradas do Partido Republicano em restringir o acesso ao voto (particularmente para afro-americanos) deveriam ser encaradas como sintoma de uma doença que aflige as elites há bastante tempo: a recalcitrante oposição à democracia, incluindo o direito ao voto.
Desde o advento do Estado moderno, as classes dominantes tentaram restringir os poderes de voto dos trabalhadores e daqueles que não fossem “bem-nascidos”. Ao contrário da estória popular de que o capitalismo naturalmente teria dado origem à democracia, os poderes hegemônicos da Europa do século XIX restringiram o voto por tanto quanto foi possível fazê-lo. Apenas quando confrontados por mobilizações de massa – ou quando a guerra por todo o continente aniquilou grande parcela dos homens da classe trabalhadora – ficou claro que o direito não podia mais ser negado.
As particularidades de cada país europeu variam. Em algumas nações, após lutas intensas, os trabalhadores conquistaram formas limitadas de sufrágio masculino universal antes da Primeira Guerra Mundial; de forma mais comum, amplos direitos de sufrágio apareceram apenas após a guerra.
No entanto, o que havia de consistente eram os atores que pressionavam pelo sufrágio universal: sindicatos e, crucialmente, partidos socialistas. De fato, o que foi chamado de “onda democrática” do século dezenove poderia ser chamado facilmente de “onda socialista”.
Bélgica
Em 10 de agosto de 1890, 75 mil homens e mulheres tomaram as ruas de Bruxelas para protestar pelo sufrágio universal. Como qualquer nação supostamente democrática daquele tempo, a Bélgica limitava o direito de voto a homens proprietários. Os trabalhadores eram totalmente apartados da vida política do país. Ao longo dos 20 anos seguintes, isso iria mudar – mas não até que uma série de greves gerais convulsionasse o país e a Primeira Guerra Mundial o estraçalhasse em pedaços.
Em 1890, o ano da primeira greve geral, as elites dominantes temiam que conferir poder de voto à classe trabalhadora daria ao ascendente movimento socialista um aríete com o qual arrombariam os portões da sua cidadela autocrática. Embora fundado apenas cinco anos antes, o Parti Ouvrier – assim como seus partidos-irmãos na Segunda Internacional – crescia solidamente, aglutinando trabalhadores em um bloco político coerente e poderoso. Os líderes do partido esperavam poder trilhar um paciente curso reformista, conquistando direitos para os sindicatos e ao sufrágio sem apelar para uma estratégia revolucionária de greve de massas.
Mas a realidade inflexível – os poderes que deliberadamente bloqueavam medidas pró-trabalhador no parlamento – e a militância dos trabalhadores forçaram os líderes do partido a assentir que ações mais radicais seriam necessárias.
Em 1893, em continuidade às ações em massa de três anos antes, o Conselho dos Trabalhadores declarou uma greve geral. Protestos em massa eclodiram em múltiplas cidades, mineiros cortaram linhas de telégrafo e de telefone e soldados perseguiram líderes de partidos pelas ruas com baionetas em punho. Por trás de barricadas construídas por mineiros, mulheres jogavam pedras e cerâmicas quebradas na polícia.
A ação militante deu certo. As restrições de propriedade foram abolidas. Os líderes do Parti Ouvrier, incluindo um trabalhador de mármore chamado Louis Bertrand que ajudou a fundar o partido, foram convidados a participar do parlamento.
Contudo, o progresso não ocorreria de maneira linear. As eleições do ano seguinte reverberaram ondas de choque pela Europa, quando dúzias de deputados socialistas foram eleitos para o parlamento ao invés dos nomes já esperados. O partido imediatamente arregaçou as mangas, elaborando leis para apoiar sindicatos e estabelecer seguros por invalidez e pensões. A elite dominante, percebendo seu erro, pressionou por um sistema de “votação plural” que davam peso adicional aos cidadãos que viviam em redutos do conservador Partido Católico.
Então, os trabalhadores – muitas vezes a despeito das objeções dos líderes do partido – mantiveram a pressão. Quando o governo tentou aprofundar as desigualdades nos direitos ao voto, o movimento socialista declarou greve novamente, em 1902. Dessa vez, mais de 300 mil trabalhadores inundaram as ruas.
O combate continuou nos anos subsequentes. Os partidos católicos, ainda com o auxílio da votação plural, fortaleceram sua maioria em 1912 e atacaram o sufrágio universal na legislatura que assumiu no ano seguinte. Os líderes socialistas, tentando equilibrar as políticas concorrentes dos mineiros rurais e de políticos socialdemocratas urbanos, ainda contavam com que o parlamento viesse a aprovar o sufrágio universal.
Ao invés disso, 1913 trouxe outra greve geral – a maior da história do ocidente europeu. O financiamento da greve foi estabelecido a partir de um sistema de cupons, e foram organizadas cooperativas e creches. Le Peuple, um jornal diário socialista, publicou receitas para soupes communister para serem preparadas nas cozinhas comunais. Exibições de arte, visitas a museus e caminhadas no campo aproximaram as famílias da classe trabalhadora, oferecendo não apenas respeito, mas nutrição cultural.
A greve não atingiu seus objetivos de sufrágio universal pleno e equânime. Apenas após a Primeira Guerra Mundial, em 1919, o voto plural finalmente foi derrubado e as mulheres não obtiveram o direito ao voto até 1948.
Ainda assim aqueles confrontos pela franquia democrática tiveram um impacto enorme na consciência de outros socialistas no continente – o Parti Ouvrier, disse Rosa Luxemburgo, inspirou toda a Segunda Internacional a “falar belga”.
Império Russo
Durante a greve geral belga de 1902, a cidade de Louvain foi o palco de um massacre horrendo: 12 trabalhadores morreram após oficiais do estado abrirem fogo. Mais ao leste, outro assassinato em massa liderado pelo governo desencadeou uma greve geral seminal – a Revolução Russa de 1905.
Ao passo que em 1904 os liberais e progressistas tinham sido bem sucedidos na pressão por seguridade aos trabalhadores, na abolição da censura e na expansão local do governo representativo, o Império Russo ainda não possuía um parlamento federal. Em janeiro de 1905, greves eclodiram em múltiplas cidades, culminando em marchas pacíficas em São Petersburgo de homens, mulheres e crianças, cantando hinos e brandindo uma petição que demandava um parlamento eleito. As tropas atiraram nos participantes antes que eles pudessem chegar ao Palácio de Inverno, assassinando mais de mil.
Performances teatrais foram espontaneamente interrompidas e milhares de estudantes e profissionais fizeram greve em solidariedade aos trabalhadores. O clube dos comerciantes, que dificilmente poderia ser considerado um reduto radical, fechou suas portas aos guardas por seu envolvimento no massacre.
Em poucas semanas, metade dos trabalhadores da Rússia Europeia e 93% de todos os trabalhadores da Polônia ocupada pela Rússia estavam em greve. Em Lodz, grevistas mantiveram o governador provincial refém em um hotel. Por todo o império, a rede ferroviária parou.
A revolução estava no ar. Os meses seguintes testemunhariam a primeira celebração aberta do Primeiro de Maio e o lendário motim do Potemkim às margens de Odessa, posteriormente imortalizado pelo cineasta Sergei Eisenstein. E, pelo fim de outubro, o czar relutantemente assinou o manifesto que estabelecia a Duma – e que estendia a concessão rumo ao sufrágio universal masculino.
Em outras partes do Império Russo, ações radicais pelo voto tiveram consequências ainda mais abrangentes. Uma greve geral na Finlândia, em 1905, levou não apenas à adoção do sufrágio masculino universal e a um sistema parlamentar unicameral, mas também garantiu às mulheres o direito ao voto e a candidatar-se em eleições – sendo o primeiro país na Europa a fazer isso. Ao longo das décadas que se sucederam, os trabalhadores do país usariam esses direitos expandidos – antes da greve, apenas 8% da população podia votar – para pressionar por reformas cada vez mais revolucionárias.
Suécia
É popular entre os liberais americanos a imagem da Suécia como uma utopia socialdemocrata, uma nação onde valores esclarecidos teriam triunfado sobre o egoísmo. Contudo, a história do movimento de trabalhadores na Suécia é uma evidência da tenacidade da classe dominante do país – incluindo sua obstinada resistência ao direito de voto.
A expressão política do movimento trabalhista, o Partido Operário Social-Democrata da Suécia (conhecido também como Partido Socialdemocrata Sueco, ou PSS), se formou em 1889 em meio a uma ampla organização dos trabalhadores. Assim como em outros lugares, aqueles sem propriedades não possuíam direitos políticos básicos. O objetivo do movimento socialista sueco era primeiro conquistar a democracia política.
Em 1902, uma greve geral de dois dias pelo sufrágio universal serviu como um disparo de aviso para o estridente governo de direita. Convocada pelos partidos políticos e sem intenção alguma de durar mais do que alguns dias, a greve causou uma forte impressão no governo, dado o incrível apoio das massas. Ainda assim, a greve não contou com a participação crucial dos sindicatos.
Isso viria em parte com a greve geral de 1909, que durou um mês e da qual participaram quase meio milhão de trabalhadores. O objetivo inicial era combater o bloqueio aos trabalhadores e o congelamento de salários. Porém, como o líder do sindicato dos trabalhadores dos transportes, Charles Lindley, lembrou, “naquela época havia uma fé quase ilimitada na greve geral como um meio decisivo para conquistar o sufrágio universal”. A greve de inspirações econômicas cada vez mais refletia as aspirações políticas democráticas dos trabalhadores.
A greve paralisou todas as principais indústrias de exportação do país e os trabalhadores tentaram espalhá-la ainda mais. Os empregadores responderam com uma tática padrão: importando fura-greves. Em um caso, três trabalhadores suecos desempregados organizaram-se independentemente para bombardear um navio que abrigava fura-greves vindos da Grã-Bretanha.
Conforme os dias se tornavam semanas, entretanto, os líderes da greve foram forçados a recuar, confrontados com recursos escassos e a perspectiva de ver aumentar o fardo sobre os trabalhadores no caso de uma recessão econômica. Os liberais começaram se voltar contra os grevistas quando os tipógrafos aderiram, vendo a participação deles como uma agressão ao “direito de expressão”. As famílias dos trabalhadores enfrentavam bravamente as privações, cada vez maiores. No fim, a Associação dos Empregadores Suecos acabou passando, portanto, a uma posição em que podiam ditar as regras – e assim o fizeram.
Embora a greve tenha, de diversas formas, representado um fracasso, hoje ela é universalmente reconhecida como tendo estabelecido as bases para a democratização da sociedade sueca. Mais tarde naquele ano, todos os homens no país, independentemente de serem proprietários, conquistaram o direito ao voto em ao menos uma câmara do governo federal. A democracia política plena, ainda que distante, estava no horizonte.
Alemanha
Quase dois terços da Alemanha do final do século XIX eram parte do Reino da Prússia, que levou a cabo a unificação dos estados alemães em 1871. Naquele ano, apesar da aprovação do voto secreto, igualitário e geral para todos os homens com mais de 20 anos, a Prússia manteve um sistema de 1849 que dividia os votantes em três classes, baseadas em sua faixa de imposto de renda.
O arranjo obviamente desigual – um dos primeiros líderes socialistas, Wilhelm Liebknecht, referiu-se ao Reichstag como “a folha de figueira do absolutismo” – criou uma situação na qual 4% da primeira classe mantinha tantos votantes quanto a terceira classe, que constituía mais de 82% dos votos válidos da população. E havia outro controle antidemocrático ao poder dos trabalhadores: a câmara alta, o Reichsrat, poderia barrar qualquer mudança constitucional aprovada pelos representantes do Reichstag eleitos diretamente. O Segundo Reich, declarou Marx, era um “despotismo militar protegido pela polícia, embelezado com formas parlamentares”.
De alguma maneira, o Partido Social Democrata Alemão (PSD) floresceu apesar de tais adversidades. Era o maior partido socialista no continente, o partido da Segunda Internacional por excelência. O Programa de Erfurt do PSD, ratificado em 1891, declarava: “A luta da classe trabalhadora contra a exploração capitalista é necessariamente uma luta política. A classe trabalhadora não pode levar adiante suas lutas econômicas e não pode desenvolver sua organização econômica sem direitos políticos”. No topo das demandas do partido: “direito de voto universal, igualitário, por meio do voto secreto para todos os cidadãos maiores de 20 anos, independente do sexo”.
As elites do país não estavam contentes. Após o desenvolvimento de um movimento grevista nacional, empregadores insistiram que o kaiser rescindisse o voto de todos os filiados ao Partido Social Democrata e que limitasse as greves por meios legais. O kaiser, demonstrando não ter nenhuma aversão à retórica despótica, falou a um grupo de novos recrutas militares, em Postdam, em novembro de 1891:
As atuais maquinações socialistas podem ter como resultado que eu os ordene atirar em seus próprios parentes, irmãos, mesmos seus pais… mas mesmo assim vocês devem seguir minhas ordens sem resmungar.
O PSD pacientemente se mobilizou e se organizou para se tornar o maior partido do parlamento da Prússia por volta de 1908. Eles conduziram repetidos protestos de massa pelo pleno sufrágio, os quais foram inexoravelmente recebidos com repressão brutal.
Na véspera da Primeira Guerra Mundial, os direitos de sufrágio ainda eram uma comarca da elite. Entretanto, por causa de seus esforços, o PSD foi reconhecido como a força mais consistentemente democrática na Alemanha pré-guerra.
Grã-Bretanha
Entre todos os países europeus da Segunda Internacional, a Grã-Bretanha possuía o sistema de votação menos democrático – a proporção de homens acima dos 20 que podiam ir às urnas no começo da Primeira Guerra Mundial era menor do que o de oito entre nove países para os quais há dados disponíveis.
A ausência de direitos estava profundamente enraizada no sistema político do país. No começo do século XIX, em um sistema eleitoral desfigurado por falcatruas, apenas 4% da população podia votar. Em meados do século, os protestos pró-sufrágio dos Cartistas – o primeiro movimento da classe trabalhadora na história europeia – foram recebidos com apatia pela elite. Em 1884, o acesso ao voto ainda permanecia desigual entre a cidade e a zona rural, eleitores válidos ainda precisavam provar uma base mínima de rendas em aluguel para estarem aptos a votar.
A classe dominante simplesmente não podia tolerar a possibilidade de aprovação de uma medida que, segundo eles imaginavam, daria poder político para “a ralé”: o sufrágio universal, na estimativa do político britânico Thomas Babington Macaulay, era “incompatível com a propriedade… e consequentemente incompatível com a [própria] civilização”.
Fazendo frente contra Macauley, estavam a classe trabalhadora e seu crescente movimento. O Partido Trabalhista, firmemente comprometido com o sufrágio universal, fazia mobilizações pela democracia política e foi capaz de obter algumas concessões antes da Primeira Guerra Mundial. Em 1911, eles pressionaram pelo fim do veto da Casa dos Lordes sobre a legislação.
Finalmente, na esteira da guerra continental, o sufrágio masculino universal foi estabelecido, e as mulheres conquistaram o direito ao voto em 1928.
A ordem política que, nas palavras de Lenin, colocava as massas trabalhadoras em uma armadilha no interior de um “bem equipado sistema de bajulação, mentiras e fraudes” revelava fissuras.
Lutadores pela Democracia
Os primeiros partidos socialistas mostravam um compromisso incansável com o sufrágio universal – sem equivalente em nenhum outro partido.
A dedicação deles era ao mesmo tempo ética e prática. Por um lado, eles estavam determinados a derrubar as estruturas de dominação e desigualdade onde quer que elas existissem; e na esfera política, os trabalhadores estavam avassalados, sujeitos às decisões de agentes em cuja escolha eles não participavam.
Em um aspecto mais prático, os primeiros socialistas reconheciam o potencial das urnas. A luta pelo sufrágio universal convergia lutas políticas e econômicas, transformando o voto em um objeto de táticas radicais e de élan revolucionário. Ela articulava diferentes frações do movimento na busca por uma ferramenta (o voto) que os trabalhadores pudessem usar como parte de uma luta de classe mais ampla. Seu objetivo era criar uma “verdadeira democracia”, de baixo para cima, na tradição de Marx.
Hoje, em meio às lutas para manter as funcionalidades básicas de um sistema de votação democrática, os socialistas não devem esquecer o seu papel histórico na luta pela democracia política. Mesmo grande parte dos elementos democráticos liberais da democracia liberal surgiram graças às batalhas que os socialistas travaram contra os vestígios feudais do Velho Regime e a nova oligarquia capitalista.
Com praticamente apenas um século de idade – e apenas para homens de descendência europeia – o direito universal ao voto ainda é uma criança que precisa de proteção atenta. Os atuais vultos das leis de Jim Crow nos EUA, seja na Georgia ou em Dakota, revelam persistentes ameaças à sua existência, bem como a linhagem oligárquica e antidemocrática que corre forte nas veias da república estadunidense e que ainda não aceitou o sufrágio universal.
Devemos rejeitar os pronunciamentos falsamente radicais que repudiam o voto como algo inconsequente e, ao invés disso, associar a luta pelo sufrágio universal com a luta pelo socialismo e pela democracia radical. O voto foi uma conquista histórica para a classe trabalhadora e continua representando uma “pedra de papel” nas mãos dos despossuídos.
[…] europeus, foram os trabalhadores socialistas do século XIX, e não os liberais burgueses, que lutaram e morreram por direitos democráticos “burgueses” como eleições livres e liberdade de […]
[…] Não é Locke, porém, que Dunt identifica como o “primeiro liberal verdadeiramente moderno em todo o mundo”. Esse elogio pertence, em vez disso, a Benjamin Constant que, de acordo com Dunt, esboçou “um projeto para o liberalismo moderno a partir das ruínas do Terror” da Revolução Francesa. Esse é o mesmo Constant que argumentou contra a escolaridade obrigatória para crianças por violar os direitos dos “pais sobre os filhos” e que discordava da expansão do direito ao voto. […]