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Karl Marx era, sobretudo, um grande jornalista

Economista político. Filósofo. Jornalista. Dois séculos após seu nascimento, Karl Marx é lembrado por várias coisas – mas não como membro do Quarto Poder.

James Ledbetter vê isso como um erro. O editor de um livro sobre o jornalismo de Marx chamado Dispatches for the New York Tribune, Ledbetter faz uma provocação de que nós deveríamos ver Marx como um jornalista em primeiro lugar. Na entrevista a seguir, conduzida por Steven Sherman pouco depois do lançamento do livro, Ledbetter discute o conteúdo e o significado da longa carreira jornalística de Marx.


SS

Possivelmente a coisa mais surpreendente sobre esses escritos é que Marx foi publicado em um jornal dos EUA. Como Marx chegou a sua fase jornalística?

JL

Marx foi um jornalista em toda sua vida adulta. Ele começou escrevendo para Rheinische Zeitung em 1842, e fundou seu próprio jornal em 1848. Seu trabalho para Tribune foi publicado porque ele conheceu um editor de jornais norte-americano, Charles Dana (que mais tarde editaria o New York Sun) em Colônia, em 1848, e poucos anos mais tarde Dana pediu a Marx para contribuir com alguns artigos para o New York Tribune sobre a situação na Alemanha.

Eu acho que Marx e Engels viram o Tribune como um meio para publicizar e influenciar o debate com um grande número de leitores; pode até ser dito que Marx precisava de dinheiro. Os pagamentos pelos artigos da Tribune foram a forma mais estável de renda que Marx já ganhou (se você não contar os constantes “empréstimos” de Engels).

SS

Pode descrever o jornal em que ele publicou, o New York Tribune?

JL

O New York Tribune foi fundado em 1841 por Horace Greeley e rapidamente se tornou o maior jornal do mundo (uma tiragem de duzentos mil exemplares enquanto Marx estava contribuindo) assim como o principal órgão da imprensa anti-escravidão nos EUA. Ele se destacou por causa das inovações, incluindo a primeira seção regular de críticas literárias, assim como numerosos correspondentes internacionais, incluindo Marx. 

O jornal teve tempos de dificuldade financeira nos anos 1850, e quando a Guerra Civil estourou, houve uma grande discordância entre seus diretores em apoiar a guerra e apoiar Lincoln (o editor de Marx, Dana, deixou o trabalho durante esse período).

SS

Se Marx vivia em Londres, por que ele não em escreveu em um jornal britânico?

JL

Ele escreveu algumas coisas para um jornal britânico afiliado com o movimento Cartista, o People’s Paper, embora muitas vezes esses textos sejam versões adaptadas do material que ele publicou em outros lugares, como o Tribune. Já os jornais britânicos mais estabelecidos, eu não acho que eles tinham muito interesse na contribuição dele.

SS

O status de Marx como autor do Manifesto Comunista era reconhecido nessa época? Você tem alguma ideia de como esses materiais foram recebidos nos EUA?

JL

Esse é um ponto crucial. Por todas as intenções e propósitos, não havia uma tradução em inglês do Manifesto até 1888, cinco anos após a morte de Marx. Um jornal secreto britânico publicou uma tradução antes disso, mas eu não imagino que mais de cinco norte-americanos tenham lido isso.

Esse vácuo de traduções também existia para a maioria dos livros escritos por Marx. Poucos leitores norte-americanos que liam em Alemão poderiam conhecer o Manifesto e os escritos de Marx sobre filosofia, mas novamente este número deveria ser muito pequeno. Consequentemente, os escritos de Marx que os leitores da Tribune conheceram não continham a reputação que o precedeu.

SS

Você pode falar um pouco sobre a aproximação de Marx com o jornalismo?

JL

As resoluções que Marx publicou não se assemelham com boa parte do que é hoje reconhecido como jornalismo e, em muitos aspectos, não se assemelham muito ao que foi publicado como jornalismo anglo-americano no século XIX.

Ou seja: eles não contêm o que hoje seria chamado de “reportagem”: nenhuma descrição em primeira mão de acontecimentos, grandes ou pequenos; sem entrevistas com fontes, oficiais ou não. São ensaios críticos, como grande parte do trabalho de Marx, fora dos materiais de pesquisa disponíveis para ele na Biblioteca Britânica.

Isso não quer dizer que os textos de Marx não foram pontuais. Na verdade, ele era bastante meticuloso em tornar seus escritos mais atualizados possível, incluindo trechos de última hora que recebia de correspondência pessoal ou do jornal daquele dia — o que parece estranhamente irônico hoje, dado que os artigos viajavam de navio a vapor para Nova York e, portanto, seria tipicamente publicado cerca de dez a quinze dias após a redação.

Mas a aproximação de Marx com a coluna no New York Tribune foi para falar sobre um acontecimento específico noticiado – uma eleição, uma revolta, a segunda Guerra do Ópio, a explosão da Guerra Civil Americana – e filtrar ao longo disso até que ele pudesse resumir essas histórias em questões políticas e econômicas fundamentais. E então naquelas questões ele deveria fazer seu julgamento. Nesse sentido, o jornalismo de Marx se assemelha a alguns escritos que são publicados hoje em jornais de opinião, e não é difícil de ver a linha entre o jornalismo que ele escrevia e o tipo de escritos tendenciosos sobre assuntos públicos que caracterizou muito o jornalismo político (especialmente na Europa) no século XX.

SS

Várias questões abordadas no livro ressoam com as do mundo contemporâneo – questões de livre comércio, justificativas para a guerra, o impacto do colonialismo. Alguns dos meios de comunicação mencionados, como a The Economist, são iguais. Além disso, desde Marx dos movimentos políticos marxistas, pode-se dizer também que o cenário político se assemelha de algum modo ao atual, isto é, muitos pontos de inquietação e conflito, ao invés de um movimento disciplinado e facilmente identificável marchando para frente ou recuando. Você pode falar um pouco sobre como ele via a questão do livre mercado? O impacto do colonialismo e a resistência na Índia?

JL

O “livre mercado” foi indiscutivelmente a mais dominante ideologia econômica na Europa na primeira metade do século XIX, com os escritos de Adam Smith sendo traduzidos em várias línguas; com governos experimentando com redução de impostos; e uma classe burguesa em ascensão afirmou sua influência política e econômica. Muito dos escritos econômicos durante esse momento se dedicaram a expor o que ele enxergava como as falácias do pensamento do “livre mercado”, algumas delas óbvias e outras escondidas. Na visão de Marx, capitalismo é algo destinado a falhar, e a redistribuição de riqueza criada pela adoção de políticas do “livre mercado” e foi na melhor das hipóteses um fenômeno temporário, e na pior escondeu e aprofundou os efeitos da pobreza em países e segmentos da população no lado perdedor da equação liberal.

Essa perspectiva influenciou sua visão sobre a ação britânica na China e na Índia. Na sua visão, o tráfico de ópio – que durou entre o fim do século XVIII e o início do século XIX –  era necessário para sustentar a economia britânica de outra forma instável. Literalmente, Marx acreditou que a coroa britânica (agindo com a Companhia Britânica das Índias Orientais) estava forçando os indianos a cultivar ópio para forçar o vício entre os chineses – tudo em nome do “livre mercado”.

Quanto às revoltas, você identificou o que pode ser chamado caridosamente de “tensão” e menos caridosamente chamado de “contradição” nos escritos de Marx. O esmagamento da revolução de 1848 na França e em outros lugares foi, eu diria, o evento mais politicamente significativo para Marx em sua vida, certamente antes do lançamento da Primeira Internacional e do estabelecimento da Comuna de Paris em 1871. Depois de 1848, Marx entendeu o poder da contrarrevolução, começou a acreditar que sistemas governamentais e econômicos não poderiam ser derrubados até que um proletariado relativamente informado e organizado pudesse ser mobilizado para fazê-lo. Como ficou claro a cada ano que passava, em muitas nações essa organização estava a décadas de distância, se é que existia. 

E, no entanto, lendo os despachos de Marx no Tribune, você não pode deixar de ver uma urgência, uma excitação – quase uma impaciência – em seus retratos de algumas insurreições e crises na Europa e na Índia. Às vezes, ele escrevia como se essa revolta específica com os preços do milho, ou esse pequena poeira de informações das autoridades da Grécia, fosse a centelha que desencadearia a revolução. E não é como se alguém pudesse culpar Marx por se sentir assim; afinal de contas, durante esse período os chefes coroados da Europa estavam tombando e revoluções liberais pareciam prováveis ​​em vários contextos. Mas há momentos em que sua disciplina de pensamento parece deixá-lo, e ele também é propenso à tautologia de que a revolução só pode ocorrer quando as massas estão prontas, mas não podemos saber ao certo se as massas estão prontas até que elas criem uma revolução.

SS

Você notou que a visão de Marx sobre os EUA era algo surpreendente, dada a trajetória do marxismo no século XX. Pode discorrer sobre isso? Qual foi sua visão na guerra civil norte-americana e a forma como isso foi noticiado na imprensa britânica?

JL

Não sei se Marx já escreveu um ensaio no qual expôs suas visões completas sobre os EUA, e é preciso deduzir um pouco dos ensaios que escreveu durante a Guerra Civil, bem como de certos fatos, como ele ter assinado uma carta da Associação Internacional dos Trabalhadores a Abraham Lincoln, parabenizando-o por sua reeleição em 1864. Também deve-se lembrar que Marx nunca visitou os EUA.

No entanto, é claro que Marx foi atraído por, pelo menos, dois aspectos da vida norte-americana: a falta de uma monarquia e a falta de uma aristocracia estabelecida. Marx seguiu intensamente a política nos EUA e acreditou que a fundação do Partido Republicano e a eleição de Lincoln fossem eventos importantes e revolucionários na história do país.

Seus ataques pronunciados à cobertura da imprensa britânica sobre a Guerra Civil resultaram do que ele considerava uma hipocrisia generalizada da parte deles. A indústria têxtil era um grande motor da economia britânica (Engels tinha fábricas de tecido até então) e dependia de algodão barato do sul dos EUA, escravista. E quando a imprensa britânica criticou Lincoln por ser muito radical ou não ser radical o suficiente (uma observação comum era que o Norte não estava realmente avançando para abolir a escravidão, mas estava meramente protegendo a União, o que significava proteger os direitos dos escravos nos Estados em que eles ainda existiam), Marx atacou essa hipocrisia como uma cortina de fumaça para manter o algodão barato fluindo. 

SS

Como você acha que a exposição a esses escritos pode remodelar nossa compreensão de Marx?

JL

De algumas formas. Uma é que os leitores dos escritos econômicos e filosóficos de Marx podem concluir que ele era um pensador abstrato preocupado principalmente com a teoria e separado das questões imediatas ao seu redor. Claro, Marx era mais abstrato que muitos, mas eu considero que seus escritos demonstram que Marx era profundo, passionalmente engajado nos detalhes – até as minúcias – da vida pública no século XIX. De fato, alguns observadores contemporâneos agora argumentam que o engajamento de Marx na escrita jornalística afetou amplamente seu trabalho, uma linha de investigação que acho que vale a pena seguir.

Segundo: é comum para os marxistas contemporâneos retratar sua própria linha de pensamento como objetiva e científica, e separar do sentimental, moralizante pensamento que motiva liberais e outros. Existe algo que, e certamente Marx em outros contextos retratou seu trabalho como aparente método científico. E, no entanto, se você procurar neste livro a escrita mais apaixonada e persuasiva, verá que ela geralmente é empregada em nome de uma causa que se assemelha ao menos externamente por imperativos morais: acabar com a escravidão; acabar com o comércio de ópio e seu vício; dar voz às pessoas comuns em sua governança; e acabar com a pobreza.

Não é uma observação original a respeito de Marx dizer que há uma aparente contradição entre retratar a história como o resultado inevitável de forças internacionais conflitantes e tentar galvanizar as pessoas para que tomem a história em suas próprias mãos – o que poderia ser chamado de falácia do determinismo. No mínimo, esses escritos mostram que Marx nunca se contentou em sentar e deixar a história seguir seu curso; ele se sentiu compelido a persuadir, a usar o funcionamento do ciclo de notícias como pedaços de evidência de que sua visão de mundo era a mais sólida.

O que leva ao ponto final: Marx hoje é ensinado como um teórico econômico; como pensador político e até certo ponto como historiador e filósofo. Cada categoria é válida; cada uma também é incompleta. O registro histórico, no entanto, pelo menos sugere outra categoria: que Marx deveria ser pensado como escritor profissional, jornalista. A edição dos Clássicos da Penguin que eu editei é uma amostra; Marx, em geral, produziu, com a ajuda de Engels, quase quinhentos artigos para o Tribune, que juntos acumulam quase sete volumes das obras coletadas pelos cinquenta volumes dos dois. Eu considero que chegamos perto de entender a importância da retórica no trabalho de Marx se nós pensarmos ele como um jornalista.

Cierre

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Published in América do Norte, Cultura, Livros and Perfil

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