Durante a crise capitalista, com início em 2008, pensadores da esquerda se cansaram de apontar que, quando traduzidos para o inglês, os dois símbolos chineses que representam a palavra “crise” significam tanto “perigo” quanto “oportunidade”. Em termos médicos, uma crise é precisamente o momento crítico em que se descobre se o paciente vai morrer ou sobreviver.
A pandemia atual é uma crise econômica e médica. Para ser mais preciso, é um teste para os sistemas de saúde dos países da OCDE – e para a ordem econômica a que estão submetidos. Nas últimas décadas, o número de leitos hospitalares foi reduzido pela metade – apesar do envelhecimento da população. O número médio de leitos por cada 1.000 habitantes caiu de 8,7, na década de 1970, para 4,7, em 2015: os números recentes são ainda piores – na Itália, caíram para 3,18, nos Estados Unidos, para 2,77 e no Reino Unido, para 2,54. Esses são os rastros não apenas de dez anos de austeridade econômica, mas de quatro décadas de neoliberalismo.
A crise de 2008 logo se tornou mais um perigo que uma oportunidade, pelo menos para a massa trabalhadora. Levou a cortes nas aposentadorias e no sistema de saúde, congelamentos de contratações no setor público, reduções no salário mínimo e o desmantelamento dos acordos coletivos de trabalho no sul da Europa. Tudo isso em nome da restauração da competitividade e da redução da dívida pública – que só virou de fato um problema após a onda de resgates bancários.
Então, o que podemos dizer da crise de hoje? Os perigos são óbvios. O neoliberalismo não está morto simplesmente porque as medidas de controle orçamentário estão temporariamente suspensas, os governos estão se expandindo em termos fiscais e até estatizações estão sendo cogitadas. Isso tudo já aconteceu em 2008; dois anos depois, a conta dos socorros às empresas e bancos foi apresentada à população.
Hoje, os poderosos nos mostram claramente o que estão fazendo. Donald Trump diz: “Intervenção governamental não significa que o governo vai tomar conta de tudo. O objetivo não é enfraquecer o livre-mercado. É preserva-lo.” Em 2008, no início da crise, uma medida de austeridade disfarçada foi colocada em prática devido às alterações de equilíbrio orçamentário; e, hoje, o Estado de Nova York vem implementando duras medidas de austeridade, como o corte de US$ 1,3 bilhão no orçamento destinado a educação e serviços sociais.
Com a socialização da dívida corporativa já em andamento, o risco de se repetir o que aconteceu depois da crise de 2008 existe. Vai acontecer justamente isso se não houver uma pressão massiva por parte dos sindicatos e da esquerda para que o escudo de proteção às empresas seja controlado pelo poder público. O que significaria transferência de ações empresariais para o setor público e financiamento estatal através de medidas como a taxação de riqueza. Nesse sentido, a crise apresentaria muitos perigos – mas também oportunidades.
Trabalhadores essenciais
A primeira dessas oportunidades é o fato da crise da COVID-19 revelar que tipo de trabalho faz a sociedade realmente funcionar – que grupos de trabalhadores são, como os bancos em 2008, “importantes demais para falir”. Internacionalmente, os políticos estão, de repente, aplaudindo a classe trabalhadora: enfermeiras, caixas de supermercado, funcionários de depósitos, responsáveis por logística, coletores de lixo. Enquanto isso, os trabalhadores rurais são dispensados dos “lockdowns” e fechamento de fronteiras e são levados para ajudar nas colheitas.
Os trabalhadores estão na linha de frente do combate à crise, sustentando a sociedade e colocando suas vidas e a de seus familiares em risco. As famílias dos profissionais da classe dominante estão vendo, em primeira mão, o que significa cuidar de inúmeras crianças sem creches, jardins de infância e escolas primárias. Mas ninguém está sentindo falta dos engravatados das bolsas de valores, consultorias ou escritórios de advocacia especializados em defender grandes corporações. Aqueles que sempre foram invisíveis – cujas leis de segurança empregatícia eram “muito rígidas”, cujos salários eram “muito altos”, cujas necessidades de assistência médica eram “muito caras” e cujas reivindicações por aposentadoria eram “muito gananciosas” – viraram, de uma hora para outra, os heróis.
Essa mudança de discurso é bastante significativa, mesmo em comparação à crise de 2008. É verdade que aplausos não pagam o aluguel e que a política internacional está protegendo mais as empresas do que os trabalhadores. Mas existe um potencial de ganho de autoconfiança e consciência de classe por parte das massas assalariadas: aqueles que são “importantes demais para falir” devem receber melhores salários! Isso significa receber no mínimo de US$ 15 por hora, nos Estados Unidos, e 13 euros, na Alemanha; significa também facilitar a formação de sindicatos por meio de procedimentos de verificação de cartões e outras medidas como a Lei de Livre Escolha dos Empregados, nos Estados Unidos e, na Alemanha, o aumento de cobertura da negociação coletiva em setores não sindicalizados, como varejo e logística. Também há espaço para garantias maiores como a certeza de que apenas empresas enquadradas na negociação coletiva podem receber contratos governamentais, etc..
Isso é realmente novo. O movimento trabalhista ocidental, que se manteve na defensiva desde a virada neoliberal, viu esmorecer a autoestima impulsionada pelo grito de guerra de Georg Büchner: “Trabalhadores, acordem e reconheçam seu poder! As rodas param de girar se o seu braço forte assim desejar!”
Na esquerda, essa ideia foi substituída por um sentimento de pena da classe trabalhadora – pelo foco na sua vulnerabilidade e nas privações a que é submetida, no lugar do seu papel central na sociedade. É raro a esquerda resgatar a máxima de que são os trabalhadores, ao lado da natureza, que criam toda a riqueza. Aquela história da “Eterna Solidariedade” nos dizendo que “quando a inspiração sindical conquista a maioria da classe trabalhadora, não há poder maior na face da terra” – mensagem inexistente em muitos discursos de esquerda atualmente. Hoje, no entanto, estamos vendo renascer o “orgulho de ser trabalhador” – algo extremamente importante!
Mas essa nova autoconfiança da classe trabalhadora não aparece por meio de discurso. Em vez disso, irrompe em novas lutas trabalhistas contra as demandas irracionais dos empresários, especialmente dos que fazem parte de setores não essenciais da economia.
Na Alemanha, os sindicatos estão lutando para que o salário oferecido por meio período de trabalho aumente para 90% do anterior (em vez dos 60% concedidos pelo governo). Outros países já vivenciam greves violentas contra a produção desnecessária e para que os governos negociem um novo auxílio-doença com os sindicatos: na Itália, trabalhadores entraram em greve na Fiat, nos estaleiros, na indústria siderúrgica, de aviação e armamentos; na Espanha, na Mercedes, na Iveco e na Volkswagen; nos Estados Unidos, na Fiat Chrysler em Sterling Heights (Michigan), na rede de supermercados Whole Foods, na General Electric e na Amazon de Chicago e Nova York (como aconteceu em muitos países europeus). Os motoristas de ônibus de Detroit também obtiveram sucesso ao exigir que a venda de passagens durante a pandemia fosse interrompida. Assim como as manifestações contra a pobreza na Itália fizeram com que fosse aprovada uma ajuda financeira emergencial. Até agora, a lista de lutas trabalhistas ao redor do globo impulsionadas pela COVID-19 é interminável.
Estocando suprimentos
Se os trabalhadores estão reconhecendo o seu poder de barganha, as crises também trazem medo e reforçam algumas ansiedades sociais pré-existentes. Elas aumentam a tendência dos seres humanos de buscar sua própria forma de agir.
Para alguns, a crise mostrou como internalizamos o esfacelamento da solidariedade social durante o neoliberalismo. Sobrevivencialistas e outros com mais recursos estão acumulando bens aparentemente ou verdadeiramente escassos, como papel higiênico, respiradores e produtos de limpeza. Indivíduos como Timo Klingler, de 24 anos, de Sandhausen – Alemanha, e Matt Colvin, de 34 anos, de Chattanooga – Tennessee, tentaram virar milionários comprando sistematicamente suprimentos médicos. As pessoas estão literalmente brigando dentro dos supermercados por papel higiênico e, na cidade alemã de Würselen, um indivíduo chegou a arrombar um carro para roubar dois pacotes de lenços umedecidos. Comportamento hediondos – que o crítico e psicólogo Klaus Holzkamp chama de capacidade restrita de agir – se intensificam em indivíduos enquadrados nos valores neoliberais.
No entanto, mesmo neste contexto, novas formas de solidariedade e socialização estão surgindo. Em Berlim, as pessoas abriram pontos de coleta de alimentos nas praças públicas para ajudar os sem-teto; em Montreal, no Canadá, vizinhos cantam canções de Leonard Cohen em suas varandas e janelas. Na cidade de Bamberg, no sul da Alemanha, cantam a música símbolo do Partido Comunista “Bella Ciao” em solidariedade à Itália. Em todo o mundo, militantes da esquerda se oferecem para fazer compras ou passear com os animais de estimação dos seus familiares mais vulneráveis, idosos ou pessoas com problemas de saúde pré-existentes. De repente, todos nós conhecemos nossos vizinhos e estamos experimentando uma forma mais tangível de solidariedade.
Todas essas experiências não apenas (re)modelam as subjetividades, como representam um enorme potencial para o surgimento de novas organizações comunitárias e políticas direcionadas às cidades, e, por isso, os movimentos sociais de esquerda deveriam beber dessa água. Em parte, eles já estão fazendo isso. Na região da Baixa Saxônia, na Alemanha, membros do Partido Die Linke estão substituindo as cozinhas comunitárias e os sistemas de apoio aos desempregados, metade dos quais foram cancelados, por estruturas próprias, com o objetivo de preencher as lacunas deixadas pelo Estado e garantir o direito à alimentação.
Mudança estrutural
Mas essa crise não oferece apenas oportunidades para organizações comunitárias que visam transformações de base. Também traz a possibilidade de mudança das principais estruturas da ordem econômica e social do capitalismo. Isso já é algo que preocupa a classe dominante. Como afirmou recentemente a The Economist da Grã-Bretanha, “agora vai ficar difícil argumentar que a tal ‘árvore mágica do dinheiro’ não existe. Se os Bancos Centrais prometem financiar o governo durante a pandemia do coronavírus, as pessoas podem se perguntar por que eles não vão também financiar uma guerra contra um inimigo estrangeiro ou investir em novos acordos de defesa ambiental. A bíblia do liberalismo diz: o mundo está nos estágios iniciais de uma revolução em políticas econômicas… É provável que o Estado tenha que desempenhar um papel muito diferente na economia – não apenas durante, mas depois desta crise.”
Mas a revolução não acontece do nada. A esquerda precisa aproveitar esta oportunidade histórica antes que a crise também nos atinja sob a forma de medidas de austeridade. Isso já aconteceu antes. Em 2008-9, a The Economist (que Lenin apelidou de “jornal dos milionários britânicos”) lançou o seguinte slogan: “ajuda aos mais pobres durante a crise, medidas de austeridade depois”.
A tarefa da esquerda é propor algo mais ambicioso. Precisamos de trilhões de dólares para implementar as mudanças sócio-ecológicas presentes há tempos nos programas eleitorais do Partido Trabalhista de Jeremy Corbyn, de Bernie Sanders e do Die Linke, na Alemanha. A crise legitimou a demanda por maior intervenção estatal. O fato de as empresas privadas estarem levando o princípio de maximização do lucro às últimas consequências – com as roupas de proteção dezenove vezes mais caras na Alemanha, os remédios contra o coronavírus dobrando de preço nos EUA e os hospitais privados obrigando suas equipes fazer hora-extra para receber dinheiro do governo – escancara tudo o que a esquerda sempre disse, seguindo as teorias de Karl Marx ou Karl Polanyi. O mercado capitalista não é um mecanismo eficiente de distribuição de renda, mas um meio de enriquecer empresas privadas às custas da sociedade e do meio ambiente.
A crise revela a impotência do Estado Neoliberal. Quando a Comissão Europeia se sente compelida a pedir às pessoas que possuem impressoras 3D que contribuam com suprimentos médicos, a deterioração do sistema fica explícita. A crise da COVID-19 está, portanto, forçando os Estados a tomar medidas alternativas como a estatização de hospitais feita pelo governo de centro-esquerda, na Espanha. Obviamente, um sistema de saúde essencialmente neoliberal, com hospitais privados e poucos serviços públicos, não está preocupado com a saúde da população, mas com as altas margens de lucro dos acionistas ou com o máximo de cortes de gastos e recursos públicos, que levam à cobrança de menos impostos das corporações e dos mais ricos.
A crise deixou clara a necessidade de nacionalização e financiamento de hospitais para garantir a saúde pública. E como, entre outras coisas, a crise do mercado imobiliário já nos mostrou que as ações das corporações imobiliárias devem pertencer ao setor público, é melhor a esquerda começar agora mesmo uma campanha nacional e internacional para que áreas fundamentais como saúde, educação, moradia, mobilidade e comunicação sejam dissociadas do princípio do lucro. A hora de implementar a socialização progressivas é agora. E isso inclui o setor financeiro. Nós, enquanto sociedade, só conseguiremos planejar o nosso futuro e o futuro deste planeta de forma democrática evitando, assim, uma catástrofe, se controlarmos o financiamento da produção nas áreas fundamentais. A superação desta crise multidimensional – civilizatória e humanitária – só virá com o socialismo ou, então, ela não virá.
Redirecionando a produção
Para superarmos essa crise histórica é fundamental que a economia seja ecologicamente sustentável e democraticamente planejada. Isso se dá com redirecionamento da produção, desglobalização seletiva e dissociação. Neste sentido, a crise também pode ser vista como uma oportunidade.
A crise da COVID-19, junto com fechamento das fronteiras internacionais e as vulnerabilidades da produção “just-in-time” (toyotismo), tornaram escassos alguns bens essenciais. A crise nos mostra como o sistema de produção privada, com fins lucrativos, coloca a saúde pública em risco quando, por uma questão de custo, equipamentos médicos precisam ser importados da China.
De repente, a crise da COVID-19 está fazendo com que o Estado-nação passe a ordenar produções estrategicamente importantes em uma nova forma de economia de guerra. Na Alemanha, a Volkswagen está fabricando suprimentos médicos, como respiradores. Assim como os fornecedores da indústria automobilística, Zettl e Sandler, o fabricante de colchões da Turíngia, Breckle, e as empresas têxteis, Trigema, Mey, Eterna e Kunath. A Jägermeister, a Diageo e a Cervejaria Beck estão produzindo desinfetantes. Nos Estados Unidos, diante da escassez de ventiladores médicos, o governo Trump recorreu à Lei de Produção de Defesa, institucionalizada durante a Guerra da Coréia, na década de 1950, e está forçando a General Motors a produzir ventiladores.
O mesmo está acontecendo na Grã-Bretanha, onde o primeiro-ministro conservador Boris Johnson teve de pedir à indústria britânica que substituísse suas linhas de montagem de carros, motores de aeronaves, equipamentos para diálise e escavação pela de ventiladores. A única empresa que ainda estava produzindo ventiladores na Grã-Bretanha, a Breas, fica na cidade de Shakespeare, Stratford-upon-Avon – material para uma tragédia sobre o neoliberalismo.
Além disso, os próprios trabalhadores estão exigindo que sejam realocados para um trabalho mais útil. Particularmente interessante foi o caso da General Electric, onde os funcionários pararam a produção e exigiram que a empresa começasse a fabricar ventiladores para ajudar na luta contra ao COVID-19 e evitar futuras demissões.
Portanto, a crise oferece uma oportunidade de redirecionamento da produção a longo prazo – algo também necessário para reduzir danos ambientais. A tarefa da esquerda é aproveitar o momento e expor a absurda lógica capitalista, na qual faz sentido pescar no Mar do Norte, industrializar os peixes no sudeste da Ásia e vendê-los em supermercados europeus.
Produção a partir da necessidade
O novo intervencionismo estatal e a produção no estilo “economia de guerra” nos mostram que é possível colocar a indústria em uma direção sócio-ecológica – mas apenas se os Estados concordarem e não quiserem voltar à “normalidade” e ao status quo insustentável.
Eles nos mostram o que um governo eco-socialista poderia implementar. O que seria possível se planejássemos as sociedades a longo prazo, em vez de deixar o desenvolvimento a serviço dos interesses das grandes corporações, que visam o lucro a curto prazo e o enriquecimento de seus acionistas, sem se importar com a destruição do planeta. O planejamento atual nos permite vislumbrar uma futura ordem econômica e social, na qual o foco não está na maximização do lucro e na produção de mercadorias às custas da humanidade e da natureza, mas na produção a partir das reais necessidades da sociedade e do planeta.
A crise é, portanto, uma brecha histórica. Mas os ventos estão soprando na direção de soluções públicas e planejadas; e o sucesso é tudo menos automático. A expansão fiscal, o planejamento econômico e o redirecionamento da indústria não serão sustentados, não serão permanentes – não vão estabelecer uma economia a serviço dos interesses da maioria social e do planeta – a menos que exista bastante pressão por parte da esquerda para que isso aconteça.
Como escreveu o pensador marxista Walter Benjamin em seu trabalho historiográfico Arcades Project: “Ser dialético é içar as velas na direção do vento que sopra a história. As velas são os conceitos. Não basta, no entanto, ter as velas. É preciso dominar a arte de ajustá-las ao vento.”
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