A indústria farmacêutica, assim como as petroleiras e os fabricantes de armas, não é muito bem vista no imaginário público.
Há boas razões para isso. Há uma crescente conscientização sobre um conflito de interesses inerente ao teste de novos medicamentos pelas empresas que os fabricam – como Pfizer, Merck e Eli Lilly – e um fluxo constante de relatos de jornalistas, pesquisadores e médicos sobre julgamentos deliberadamente desonestos, resultados desfavoráveis sendo escondidos e revistas acadêmicas sendo compradas.
No entanto, o maior crime das principais empresas farmacêuticas privadas do mundo não é aquilo que elas fazem, mas o que elas não fazem. Na atual guerra contra os micróbios e as infecções, essas empresas abandonaram seus postos no momento mais crítico: quando o inimigo está se preparando para seu ataque mais feroz em gerações. Enquanto essas empresas continuam se esquivando de seus deveres – na prática já tendo abandonado a pesquisa de novos antibióticos por cerca de trinta anos -, altos funcionários da área de saúde pública vêm alertando que o mundo poderá em breve retornar à era pré-antibiótica, uma época miserável e terrível, de que poucas pessoas vivas ainda se lembram.
Relatórios do mercado, periódicos de medicina, análises de organizações filantrópicas, estudos governamentais e avaliações do próprio setor farmacêutico preferem uma abordagem mais delicada, atribuindo a ameaça aos “incentivos de mercado insuficientes“. Minha solução é um pouco mais elegante: a socialização de toda a indústria.
Opções de políticas como novas regulações e uma supervisão mais apurada do setor, podem ter sucesso em moderar os malefícios das grandes farmacêuticas em algumas áreas, como em alguns tipos de pesquisas. No entanto, na Guerra contra os Micróbios, essas medidas são radicalmente insuficientes ou de nenhuma utilidade. Existem algumas medidas preventivas de emergência que hospitais e criadores de gado podem adotar para retardar o avanço do inimigo, mas essas tentativas não podem fazer mais do que adiar a desgraça iminente. Socializar o desenvolvimento de medicamentos é a única maneira de resolver esse problema.
Uma ameaça comparável às mudanças climáticas
Alguns anos atrás, o diretor dos Centros de Controle e Prevenção de Doenças dos EUA, Thomas Frieden, alertou as autoridades sobre a “janela de oportunidade limitada” para lidar com o “pesadelo” representado pelo surgimento de uma família de bactérias altamente resistentes ao que costuma ser nossa última linha de defesa antibiótica: o conjunto de medicamentos conhecidos como carbapenêmicos. Poucos meses antes, a principal responsável pelos serviços médicos no Reino Unido, Sally Davies, usou uma linguagem semelhante para descrever um futuro “cenário apocalíptico” dentro de vinte anos, quando as pessoas morrerão de infecções que são atualmente consideradas triviais, “porque teremos ficado sem antibióticos aos quais recorrer.”
Davies descreveu como o fenômeno “representa uma ameaça catastrófica” para a humanidade, semelhante às mudanças climáticas, e imaginou um cenário nas próximas décadas em que “nos encontraremos em um sistema de saúde não muito diferente daquele do início do século 19”, onde qualquer um nós poderíamos ir ao hospital para uma pequena cirurgia e morrer de uma infecção comum que já não poderia ser tratada. Intervenções essenciais como transplantes de órgãos, quimioterapia, substituição de ossos no quadril e cuidados com bebês prematuros se tornariam impossíveis.
Por gerações, nos acostumamos àquilo que, francamente, são feitos sobre-humanos da medicina, os encarando como algo sem excepcionalidade e vagamente duradouros, quando na verdade eles dependem da premissa de que podemos prevenir as infecções microbianas. Os antibióticos revolucionaram os cuidados de saúde: o tratamento de traumas, ataques cardíacos, derrames e outras doenças que requerem cuidados extensivos com cateteres, alimentação intravenosa e ventilação mecânica não podem prosseguir sem acesso a medicamentos antimicrobianos. À medida que a população envelhece, a demanda por esse tipo de terapia intensiva apenas crescerá.
Então, como era a época pré-antibiótica? Havia 30% de mortalidade por pneumonia para aqueles que não faziam cirurgia. A mortalidade por apendicite ou por um intestino rompido era de 100%. Antes de Alexander Fleming acidentalmente descobrir o primeiro antibiótico, a penicilina, os hospitais estavam repletos de pessoas que contraíam intoxicação no sangue por meio de cortes e arranhões. Esses arranhões frequentemente se transformavam em infecções que colocavam a vida em risco. Recorrer a uma amputação ou a cirurgia como respostas médicas comuns para remover áreas infectadas não é um tratamento agradável ou preferível, mas essas foram as únicas opções para os médicos do adolescente David Ricci, de dezenove anos, de Seattle, após um acidente de trem na Índia há alguns anos. Ricci sofreu infecções por bactérias resistentes a medicamentos que nem mesmo os antibióticos de último recurso, altamente tóxicos, foram capazes de tratar.
Nós nos esquecemos o quanto as doenças infecciosas costumavam ser comuns e mortais. Nós assumimos que os antibióticos sempre estariam por aí, mas dificilmente poderíamos nos culpar por essa complacência. O general cirurgião estadunidense William H. Stewart é famoso por ter declarado que “é hora de fechar o livro sobre as doenças infecciosas e declarar como vencida a guerra contra a pestilência”. Na década de 1980, os casos de tuberculose – a primeira doença infecciosa conhecida pela humanidade e um dos nossos inimigos mais mortais, que matou 1,4 milhão em 2011 – havia caído para taxas tão baixas que os formuladores de políticas freqüentemente falavam na erradicação da doença.
As taxas de novas infecções e de mortalidade estão caindo, mas essa frágil vitória é ofuscada pelo surgimento da tuberculose multirresistente, uma forma que não é suscetível aos quatro antibióticos padrão e a tuberculose extensivamente resistente a drogas, cepas da doença que não são suscetíveis nem aos medicamentos de segunda linha. Para a tuberculose sensível aos aos medicamentos comuns, o tratamento geralmente dura seis meses, mas para a tuberculose multirresistente, os tratamentos levam cerca de vinte meses e envolvem antibióticos de amplo espectro que são muito mais tóxicos e menos eficazes.
Os antibióticos carbapenêmicos são drogas de último recurso usadas quando tudo mais falha. Enterobacteriaceae resistentes aos carbapenêmicos foram identificados pela primeira vez nos EUA em 1996 e, desde então, se espalharam pelo mundo. Até 2013, 42 dos 50 estados nos EUA haviam confirmado casos de infecções por essas bactérias. Elas são assustadoras por três razões, como apontou Frieden: “Primeiro, elas são resistentes a todos ou a quase todos os antibióticos. Segundo, elas têm altas taxas de mortalidade: matam até metade das pessoas que sofrem de infecções graves. E terceiro, elas podem espalhar sua resistência a outras bactérias. Assim, uma forma de bactéria resistente ao carbapenem, por exemplo, uma Klebsiella, pode espalhar os genes que destroem nossos últimos antibióticos para outras bactérias, como a E. coli, e tornar a E. coli resistente a esses antibióticos também. ”
Atualmente, 80% dos casos de gonorreia são resistentes à tetraciclina – um antibiótico de linha de frente – e vários países, incluindo Austrália, França, Japão, Noruega, Suécia e Reino Unido, estão relatando casos de resistência aos antibióticos cefalosporinos, que é a última opção de tratamento disponível para essa DST.
A resistência aos medicamentos está sendo relatada em todos os tipos de doenças infecciosas. Uma pesquisa recente constatou que 60% dos especialistas em doenças infecciosas haviam encontrado infecções resistentes a todos os antibióticos.
Como chegamos nesse ponto? A Organização Mundial da Saúde classifica a resistência antimicrobiana como uma das três maiores ameaças à saúde humana. Um artigo do Washington Post de Brian Valstag, de 2012, sobre a escassez de novos antibióticos, coloca a questão de maneira mais concisa: “É um caso em que a evolução que está superando a velocidade do capitalismo“.
Eterna corrida armamentista
Quando alguém precisa tomar um antibióticos, isso vai ajudar a matar as bactérias, mas inevitavelmente haverá um pequeno número de bactérias com mutações aleatórias que as tornam resistentes aos medicamentos. Isso é chamado de pressão de seleção. Essas linhagens mais resistentes dos micróbios sobrevivem e se multiplicam, produzindo novas gerações com as mesmas mutações. De fato, é apenas a evolução, só que acontecendo em um ritmo vertiginoso. Criamos uma categoria de antibióticos, os micróbios desenvolvem resistência, desenvolvemos novos antibióticos, esses desenvolvem resistência e assim por diante. É uma corrida armamentista. Nós nunca derrotamos de verdade a resistência microbiana; só podemos acompanhá-la por meio de um incessante e perpétuo desenvolvimento de novas classes de antibióticos.
Porém, se pararmos de desenvolver esses antibióticos, haverá enormes consequências para a saúde pública.
As empresas farmacêuticas produziram treze famílias diferentes de antibióticos entre 1945 e 1968. Esses eram os frutos nos galhos mais baixos – os mais fáceis de desenvolver. Desde então, apenas duas novas famílias de antibióticos foram colocadas em operação. Na década de 1980, as empresas farmacêuticas haviam praticamente parado de desenvolvê-las.
A razão pela qual as grandes farmacêuticas abandonaram esse jogo é que leva anos para desenvolver qualquer novo medicamento e custa entre US $ 500 milhões e US $ 1 bilhão por agente aprovado pelos órgãos regulatórios, sem mencionar que os antibióticos proporcionam um retorno de investimento muito menor do que outros tipos de medicamentos. Ao contrário dos medicamentos que milhões de pessoas precisam tomar pelo resto da vida para combater males crônicos, como doenças cardíacas – medicamentos que suprimem os sintomas, mas que não curam – os antibióticos geralmente são tomados por algumas semanas ou meses, no máximo. Isso torna os antibióticos desfavoráveis para o capitalismo. Como colocou um artigo de ‘chamado às armas’ pela Sociedade de Doenças Infecciosas da América, em 2008: “[Antibióticos] são menos desejáveis para empresas farmacêuticas e capitalistas de risco porque são mais bem-sucedidos do que outros medicamentos”. É a terapia de longo prazo – e não as curas – aquilo que direciona os interesses no desenvolvimento de medicamentos, concluiu o artigo.
Muitas das grandes farmacêuticas fecharam seus centros de pesquisa. Apenas 4 das 12 maiores companhias globais continuam envolvidas em pesquisas com antibióticos. [2] Essas demissões dificultam a solução da situação. Mesmo que houvesse vontade política, levaria tempo para reconstruir a força de trabalho científica altamente qualificada, perdida nas últimas duas décadas, enquanto as empresas abandonavam continuamente o desenvolvimento de medicamentos antibacterianos. “[Pedimos] ações imediatas em nível de base pela comunidade médica para tentar abordar o aprofundamento da crise de resistência antimicrobiana e, em particular, a necessidade de revitalizar significativamente a pesquisa e desenvolvimento de antibióticos”. A resistência aos medicamentos se acelera quando os pacientes não completam o tratamento com um antibiótico. O desmantelamento da infraestrutura de saúde pública e dos sistemas de apoio social nos países mais ricos (e a ausência e fragilidade nos mesmos nos mais pobres) aumentam a possibilidade de os pacientes abandonarem seus medicamentos no meio do regime prescrito, pois há menos métodos para monitorar a adesão.
A luta antibiótica está intimamente ligada à posição geográfica, ao status de classe e à riqueza de cada um. Microrganismos resistentes podem emergir e se espalhar em um ambiente onde antimicrobianos de baixa qualidade são usados. Não é preciso muito para imaginar situações em que pessoas com renda limitada ou hospitais e clínicas sem dinheiro, acossadas por planos de austeridade podem acabar recorrendo a opções mais baratas. A situação é agravada pelo descarte fácil e inadequado de antibióticos vendidos nas farmácias, principalmente nos países em desenvolvimento, mas também no Leste Europeu e na antiga União Soviética.
Assim, o que é que poderia funcionar?
Implorando e subornando as grandes farmacêuticas
No prazo imediato, os especialistas estão exigindo que as autoridades mudem para uma política de guerra, com o racionamento do uso dos antibióticos existentes; uma maior vigilância, redes de rastreamento e coordenação internacional de esforços são imperativos. Um escritório federal dedicado à coordenação de esforços para combater a resistência antimicrobiana e um plano estratégico nacional de pesquisa são vitais. Hospitais, clínicas e casas de repouso podem aumentar adesão a precauções de controle de infecções, como limpeza e lavagem das mãos de maneira mais intensa, maior uso de roupas e luvas, agrupamento de pacientes resistentes a medicamentos e reserva de determinados equipamentos somente para esses pacientes.
Porém, novamente, essas táticas podem apenas retardar o avanço galopante do inimigo. Elas afetam a taxa de propagação da resistência aos medicamentos, mas não enfrentam o próprio fenômeno da resistência aos medicamentos. Esses esforços são importantes, mas apenas porque nos dão tempo.
Fundamentalmente, o que precisamos para combater os micróbios – para passarmos da defesa para o ataque – é desenvolver novas classes de antibióticos de maneira consistente: uma meta que a maioria dos formuladores de políticas hoje já reconhece. Mas tirar essa tarefa das mãos do setor privado não está sendo considerado por ninguém. Em vez disso, as propostas de políticas vindo de instituições como a IDSA, a OMS e a União Européia significam no máximo implorar e subornar as empresas farmacêuticas para ver se assim elas movem um dedo.
Nos EUA, as opções sendo consideradas incluem o fornecimento de créditos fiscais para medicamentos criticamente necessários e subsídios para o desenvolvimento prioritário de antibióticos; compromissos de compra antecipada financiados nacionalmente ou outras “promessas de mercado”; ‘vouchers transferíveis de revisão prioritária’, que dão a outro produto da empresa (à sua escolha), o direito de ter acelerada a sua revisão pelo FDA em troca da obtenção da aprovação do FDA para um antibiótico prioritário; e a oferta de prolongamento de patente ou da exclusividade de mercado para 25 ou 30 anos para novos medicamentos considerados verdadeiramente inovadores. A última opção tem provocado uma controvérsia compreensível por sua ameaça à produção de medicamentos genéricos e à acessibilidade de antibióticos baratos no mundo em desenvolvimento. As “extensões de patentes curinga” concedem às empresas extensões de patentes de outro medicamento de seis meses para dois anos. Esse é o incentivo que as empresas farmacêuticas afirmam ser mais provável de tirá-las de sua letargia, e também aquele que tem provocado a maior controvérsia.
Ainda estamos permitindo que essas empresas escolham os produtos que gerem mais dinheiro para seus acionistas, como Viagra ou Lipitor, enquanto que, através de incentivos fiscais, subsídios ou parcerias público-privadas, pagamos a elas para que pesquisem e desenvolvam produtos que vão lhes render milhões, ao invés de bilhões. O público fica com o risco, e as empresas com o lucro. Se essas empresas fossem trazidas para o setor público sob a rubrica de Institutos Nacionais de Saúde ou de algum órgão autônomo semelhante, o dinheiro ganho com os medicamentos rentáveis poderia subsidiar a pesquisa e o desenvolvimento de medicamentos menos rentáveis, por sua vez, permitindo a liberação de mais dinheiro para ser gasto em pesquisa e desenvolvimento de novas drogas. Colocadas no setor público, as barreiras à pesquisa farmacêutica aberta poderiam ser dissolvidas, o que aceleraria os resultados e limitaria a duplicação de esforços.
Descobrir futuras gerações de antibióticos – supondo que eles estejam por aí para serem descobertos – será uma tarefa diabolicamente difícil. Mas esse é mais um motivo para trazer o setor para a esfera pública: maiores dificuldades significam custos maiores, mesmo que em troca das mesmas oportunidades de lucro risíveis. Existem estratégias completamente novas que evitam por completo a corrida armamentista por antibióticos, mas elas são altamente incertas, arriscadas e exigem anos de pesquisa básica cara, o que exige uma intensa intervenção pública.
Houve um tempo, antes da doença infecciosa especialmente virulenta conhecida como neoliberalismo, quando Washington estava muito mais aberta à intervenção direta do governo nesse setor. Em tempos de guerra, os líderes não confiavam que o setor privado estivesse à altura para essa tarefa; porém, hoje estamos em guerra contra um inimigo invisível mais cruel do que qualquer nazista, e ao setor privado não falta apenas disposição – ele simplesmente abandonou seu posto. Há evidências esmagadoras de que as grandes farmacêuticas são um deserto de inovação. Enquanto isso, a suspeita popular em relação a essas empresas tem jogado milhões de pessoas nos braços de charlatanismos de medicina alternativa. Se todo o tempo e energia focados em remédios “naturais” fossem gastos coletivamente tentando colocar as grandes empresas farmacêuticas sob o jugo do controle democrático, já estaríamos com meio caminho andado.
Por muito tempo, as críticas mais comuns dos setores progressistas a essas empresas têm sido sobre como sua busca por lucros prejudica os pobres dos países desenvolvidos e em desenvolvimento, que não podem comprar seus medicamentos. Isso é verdade até, até onde essa crítica alcança, mas ela não aborda a escala do problema. O setor farmacêutico privado é uma ameaça à saúde pública e precisa ser eliminado por completo.
[…] das correntes altas – ele contou ao repórter do FT como no setor de energia, assim como no setor da saúde, há áreas de pesquisa que possuem um potencial interessante para auxiliar a humanidade mas que […]