A Índia tinha, até 4 de abril, 2.902 casos confirmados de coronavírus e 68 mortes. Isso pode não parecer especialmente alto para um país com mais de um bilhão de pessoas, mas a primeira resposta séria do governo à disseminação global do vírus só ocorreu em 22 de março, mais de três semanas após os primeiros casos terem sido relatados: todos eram de Kerala e envolveram estudantes que haviam retornado de Wuhan.
Um mês antes, o primeiro ministro da Índia, Narendra Modi, reuniu nada menos que 125.000 pessoas em um estádio em Ahmedabad para dar a Donald Trump uma espécie de boas-vindas reais em sua visita ao país. Modi e seus aliados justificaram a extravagância deste evento com o argumento de que ele levaria a grandes acordos comerciais entre a Índia e os Estados Unidos.
Sem previsões
Claro, nada aconteceu. Mas a reunião também sublinhou a falta de seriedade que caracteriza a abordagem do governo ao desastre iminente da saúde, apesar dos avisos repetidos. Trump, no momento em que estava sendo festejado em Gujarat, estava pedindo ao Congresso US $ 1,25 bilhão para reforçar os preparativos dos EUA para a crise. No entanto, em 12 de março, o Ministério da Saúde da Índia ainda anunciava publicamente que a crise do COVID-19 não representava uma “emergência de saúde”.
Essa total falta de previsão e preparação forçou Modi a uma série de medidas evidentemente retóricas, como apelar – orquestrar, em vias de fato – um fechamento de um dia (chamado de “toque de recolher”) seguido na mesma noite por panelaços e celebrações na rua. Modi então ordenou um confinamento repentino, anunciado rapidamente, em todo o país no dia 24 de março – com apenas quatro horas de antecedência, sem nenhum aviso ou preparação real, muito menos um plano cuidadosamente pensado para milhões de trabalhadores informais, migrantes e suas famílias. Milhões que seriam forçados a uma repentina perda de renda e abrigo dos postos de trabalho metropolitanos onde trabalhavam.
O bloqueio nacional desencadeou enormes inversões de fluxos populacionais em relação a mão-de-obra, com milhares de famílias de trabalhadores inundando as principais estações de ônibus ou caminhando centenas de quilômetros a pé para voltar aos seus povoados. Muitos foram forçados a parar nas fronteiras dos Estados e foram pulverizados com desinfetantes químicos pelas autoridades policiais. As repetidas manifestações de brutalidade policial contra esses trabalhadores não puderam deixar de relembrar eventos de um mês antes na capital do país, quando a polícia de Délhi se recusou a oferecer proteção às vítimas muçulmanas, e participou ativamente, de uma série de pogroms, isto é, ataques coordenados e massivos, entre civis, contra minorias étnicas.
Desastre iminente
É difícil adivinhar quão seriamente o vírus afetará a Índia. A completa falta de preparação que define as medidas do governo é acompanhada por uma evidente falta de testes. Como resultado, nem mesmo os números vagamente confiáveis estão disponíveis para rastrear a trajetória do vírus. Deste modo, os números citados no início deste artigo podem muito bem ter sido subestimados em relação aos números reais.
Uma teoria que circula é que o vírus não sobrevive por muito tempo em temperaturas acima de 32ºC. Outra visão, recentemente expressa por um profissional médico, é que a amostragem específica do vírus que circula na Índia é muito menos agressiva do que as amostragens encontradas em países gravemente afetados, como a Itália. Qualquer que seja a verdade, permanece o fato de que a Índia tem o menor investimento governamental em saúde pública de todos os principais países do mundo.
O sistema de saúde pública da Índia não é apenas assustador para os padrões globais, como também foi prejudicado pelo regime de Modi. O primeiro ministro gasta muito mais em defesa do que em saúde e tem uma propensão a vaidosos projetos de fachada, amplamente simbólicos, que envolvem um desperdício grotesco de recursos públicos. Entre a ausência de financiamento na saúde, o estilo retórico do governo e a conduta brutal da polícia, o vírus parece bem posicionado para se espalhar rapidamente nas próximas semanas.
Isto será catastrófico para os setores mais vulneráveis da população: àqueles forçados a viver em densas e superpopulosas favelas, onde o “distanciamento social” parece utópico; ou àqueles forçados a sobreviver com salários de subsistência, como é o caso de grande parte dos “footloose”, força de trabalho descrita por Jan Breman.
Prisioneiros da consciência
Nesse cenário sombrio, é especialmente preocupante a situação da população carcerária da Índia, como um todo, e de seus presos políticos, em particular. Enquanto as classes alta e média indianas estão em isolamento completo e uma grande massa de trabalhadores tenta chegar em casa enfrentando a linha tênue entre a possível infecção e a fome iminente – os prisioneiros da consciência não têm absolutamente nenhum lugar para ir enquanto esperam a crise.
Os governos estaduais anunciaram a libertação de alguns prisioneiros das prisões de todo o país. No entanto, os líderes estaduais e federais mantiveram um silêncio constrangedor, e previsível, sobre a questão da libertação de presos políticos – aqueles que há anos foram enviados para a prisão através de leis draconianas por se oporem à injustiça social.
Em 24 de março, quando a Índia se preparava para um bloqueio de três semanas, a Suprema Corte recomendou a liberação em liberdade condicional de “condenados e detidos [em prisão preventiva] aguardando julgamento por crimes que envolvam uma pena máxima de sete anos”. Mas essa decisão não deu trégua aos presos políticos, já que a legislação draconiana sob a qual eles são sentenciados, por “sedição” através da Lei de Prevenção de Atividades Ilegais, acarreta penalidades muito mais duras, incluindo a sentença de morte.
Enquanto as autoridades transmitem mensagens instruindo as pessoas para se auto-isolarem, evitarem grandes reuniões, manterem a nutrição, usarem o saneamento adequado, etc; para os presos políticos a vida tem sido habitual dentro de enfermarias e celas superlotadas, mal higienizadas, que não têm proteção possível em tempos de pandemia global. Prisioneiros em idade com várias doenças, que recebem instalações mínimas mesmo em períodos normais, correm o risco de contrair esse vírus, notório por atacar os idosos e aqueles cuja imunidade já está comprometida.
A maioria dos prisioneiros detidos arbitrariamente sob várias leis severas estão na prisão há anos aguardando julgamento. Alguns estão lá há dez anos, sendo-lhes negadas repetidamente a possibilidade de fiança. Por causa do confinamento prolongado, muitas vezes, eles desenvolveram doenças como diabetes e vários problemas cardíacos. Se não forem tomadas medidas imediatas para remediar esta situação, ela pode se tornar fatal para os prisioneiros e será equivalente a assassinato sob custódia do Estado.
Em vista dessa situação alarmante, para levantar uma voz coletiva contra a apatia do governo e garantir que os direitos essenciais dos presos sejam salvaguardados, vários ativistas e intelectuais emitiram a seguinte declaração, exigindo intervenção imediata do governo e a libertação de todos os que estão atualmente na prisão por seus ideais ou atividades políticas:
Carta aberta às autoridades indianas
O surto de Covid-19 no país está rapidamente se tornando um risco à saúde pública, forçando o governo a declarar um confinamento nacional de 21 dias. Essa emergência da saúde pública também é uma ocasião para observar as prisões superlotadas do país. Segundo o India Justice Report (2019), a média nacional de ocupação nas prisões é de 114% de sua capacidade. A média nacional conta apenas parte da história, pois a condição ainda varia de Estado para Estado.
O surto de uma pandemia como o Covid-19 terá um impacto desastroso em ambientes fechados, como prisões, mesmo em condições normais. A superlotação agrava a situação além do controle e exige atenção imediata dos governos envolvidos. O Relatório de Justiça da Índia também afirma que mais de 67% dos presos no país pertencem à categoria de “presos sem julgamento”, ou seja, pessoas sob custódia aguardando “investigação, inquérito ou julgamento”.
Percebendo a gravidade da situação, o Supremo Tribunal havia instruído os governos estaduais a considerar a concessão de fianças para aqueles em prisão preventiva, acusados de cometer crimes puníveis com um máximo de sete anos de prisão. O Tribunal também instruiu os governos estaduais a formar um comitê de alta-patente para lidar com esse assunto. O Tribunal sugeriu que o comitê examine a possibilidade de liberar, em liberdade condicional presos condenados e outros presos em prisão preventiva, em vista do risco à saúde.
Apelamos à União e aos governos dos Estados para que tomem a diretiva do Supremo Tribunal em letra e espírito e iniciem medidas para evitar uma crise humanitária nas prisões. Gostaríamos de chamar a atenção de todas as autoridades envolvidas para os exemplos vistos em todo o mundo em que prisioneiros, incluindo presos políticos, foram libertados em vista da atual pandemia.
As prisões em todo o país têm um grande número de presos políticos, encarcerados por muitos anos aguardando julgamento ou já condenados. Muitos deles cumpriram mais de cinco anos de prisão sem nenhuma clareza sobre o andamento de seus processos. Alguns deles já sofrem de várias doenças.
Para citar alguns casos, no estado de Maharashtra, o ex-professor da Universidade de Delhi, GN Saibaba, o poeta Varavara Rao, o professor Shoma Sen, Sudha Bharadwaj e vários outros, com idade avançada, sofrem com várias doenças e estão na prisão. Em Tamil Nadu, Padma e Veeramony, também há os que, em idade avançada, sofrem com doenças e estão na prisão. Vários presos políticos em prisão preventiva que receberam fiança ainda estão presos e, em outros casos, ainda aguardam pela fiança.
Por exemplo, Ibrahim, 65 anos, um diabético crônico que também sofre de problemas cardíacos, está preso em Kerala há mais de cinco anos. Ele está esperando pela fiança em em relação à um único caso. Danish, outro prisioneiro da prisão de segurança máxima, Viyyur, Kerala, que sofre de infecções urinárias agudas, ainda está preso, apesar de receber fiança em todos os casos que o envolvem.
Muitas cadeias no país não possuem hospitais, médicos ou instalações de tratamento adequados. Os presos não têm outra opção, em caso de emergência, senão o já sobrecarregado sistema de saúde pública. Na maioria das vezes, os presos não estão em condições de receber atendimento médico adequado devido a atrasos causados por várias formalidades administrativas.
A situação dos prisioneiros será muito pior quando o temido surto de Covid-19 estiver causando estragos nos sistemas de saúde pública do país. Os arranjos feitos nas prisões para lidar com a seriedade da situação permanecem desconhecidos.
Com ciência das circunstância supracitadas, nós, com este abaixo assinado, apelamos à União e aos governos dos Estados da Índia para que iniciem medidas imediatas para fornecer fiança ou liberdade condicional a todos os presos políticos em caráter prioritário, juntamente com os outros presos.
Assinam
Arundhati Roy (romancista e escritor)
Gilbert Achcar (SOAS, Universidade de Londres)
Jairus Banaji (SOAS, Universidade de Londres)
Shakuntala Banaji (London School of Economics)
Sujato Bhadra (Vice-Presidente, Comitê de Libertação de Presos Políticos)
Tarun Bhartiya (Documentarista)
B.R.P. Bhaskar
Dr. Biju, Cineasta
Kamal Mitra Chenoy (JNU)
Bernard D’Mello (Autor, editor da EPW)
S.K. Das (Arquiteto)
Vidyadhar Date (Jornalista)
Rutuja Deshmukh (teórico do cinema, Universidade de Pune)
Dr. J. Devika
Xavier Dias (ativista de direitos humanos)
Hargopal (Professor Visitante, Escola Nacional de Direito da Índia)
Rohini Hensman (Escritor e ativista)
Meena Kandasamy (Poeta)
Harsh Kapoor (Ativista)
S. Madhusoodanan (advogado)
Dra. Alessandra Mezzadri (SOAS, Universidade de Londres)
Dilip Menon (Universidade de Witwatersrand)
Sanchita Mukherjee (CRPP)
K. Murali (Ajith)
P.A. Pauran (advogado)
Mythri Prasad
M.N. Ravunni
Adv.V. Reghunath (Liberdades Civis, Telangana)
K. Sachidanandan (Poeta)
Advogado Tushar Nirmal Sarathy
K.P. Sethunath
Pritam Singh (Universidade de Oxford)
Dr. Subir Sinha (SOAS, Universidade de Londres)
Sukla Sen (Autor)
Shyna (advogado)
Dr. T.T. Sreekumar
Stan Swamy (Ativista)
Dr. Nalini Taneja (historiador, Universidade de Delhi)
Paranjoy Guha Thakurta (ex-editor, EPW)
Dr. K.T. Ram Mohan
Rashmi Varma (Universidade de Warwick)
A. Vasu
Dr. Benjamin Zachariah (Universidade de Heidelberg)
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