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As luvas de boxe esportivas de Boris Johnson estampadas com seu lema de campanha, Get Brexit Done, durante uma visita à Academia de Boxe de Jimmy Egan, em Manchester. Foto: Frank Augstein / AFP / Getty Images.

Para o Brasil não levar no queixo

Hoje o primeiro-ministro do Reino Unido, Boris Johnson, anunciou que testou positivo para o COVID-19, o novo coronavírus que tem causado dezenas de milhares de mortos no mundo por insuficiência respiratória aguda. No dia 5 março, cerca de três semanas atrás, Johnson minimizou, em entrevista para a TV, a pandemia como uma ameaça de saúde e insistiu que a economia deveria ser preservada. Em linhas que parecem retrospectivamente macabras, levantou a possibilidade: “talvez devêssemos levar no queixo [a epidemia], de uma só vez, e permitir que a doença se espalhe pela população, sem tomar tantas medidas draconianas”. 

A posição oficial do governo era então que a contenção era impossível, e que a única estratégia viável seria a mitigação. Algo como 80% da população acabaria sendo infectada, quando a sociedade inteira atingiria então a chamada “imunidade de rebanho”, e o vírus ficaria sob controle.

A recomendação oficial foi para procurar isolar os mais velhos (em uma situação ideal, eles estariam entre os 20% não-infectados), mas deixar os mais jovens livres para contrair o vírus e desenvolver imunidade – o chamado “isolamento vertical”, segue a vida normal: “keep calm and wash your hands” [mantenha a calma e lave as mãos], em referência ao icônico cartaz “keep calm and carry on”. O Reino Unido ia então na contra-mão do que orientava a Organização Mundial da Saúde (OMS), que mostrou preocupação com governos abandonando os esforços de contenção e supressão em detrimento de estratégias de mitigação — que a maioria dos países europeus já colocavam em prática.  

O jornal Sunday Times noticiou que, em reunião ministerial, Dominic Cummings (um dos assessores mais próximos de Johnson, e um dos arquitetos da campanha do Brexit) delineou a estratégia do governo nos seguintes termos: “imunidade de rebanho, proteger a economia e se isso significa que alguns aposentados vão morrer, que pena”.

Desde a entrevista de Johnson, mais de 500 pessoas já morreram pelo coronavírus no Reino Unido, que é hoje o sexto país no mundo em casos ativos confirmados. Depois do famoso relatório do grupo de pesquisa do Empirial College (que ficou conhecido no Brasil devido às lives do biólogo Átila Ilamarino), prevendo mais de 500 mil mortes no Reino Unido, o governo mudou radicalmente o discurso. No dia 23 de março, Johnson, em pronunciamento oficial à TV, admite tacitamente o erro estratégico e anuncia um “lockdown” – por três semanas as pessoas devem ficar em casa, os estabelecimentos não-essenciais serão fechados, aglomerações de mais de duas pessoas estão proibidas e a polícia será mobilizada para garantir o confinamento social em massa.

A fábula fala de nós

Se a resposta inicial do governo britânico parece familiar, é porque de fato ela é hoje de fato a orientação dominante no governo Bolsonaro, a se julgar pelos pronunciamentos das autoridades oficiais. O ministro da Saúde, Luiz Mandetta, tem falado que a epidemia só diminuirá o ritmo no Brasil quando mais de 50% da população estiver infectada (uma obviedade matemática), e que o sistema hospitalar entrará em colapso em abril – permanecendo em colapso, se conclui, por mais alguns meses.

Basta uma rápida conta de guardanapo para chegar a conclusões horripilantes: com a “pequena” taxa de mortalidade de 1% na melhor das hipóteses. Isso significaria mais de 1 milhão de brasileiros mortos até os 50% de Mandetta. Com os hospitais colapsados, as UTI´s lotadas e os trabalhadores médicos exauridos a taxa de mortalidade pode facilmente chegar a 6% (como chegou em Wuhan; na Itália, algumas estimativas são 9% de taxa de mortalidade).

A campanha oficial lançada hoje, 27 de março, pelo governo Bolsonaro, uma peça publicitária feita sem licitação irresponsável que custou aos fundos públicos R$ 4,8 milhões, aparece como uma repetição sombria da campanha “Milão Não Para”, lançada há um mês, quando a Itália toda contabilizava apenas 12 mortos pela doença. Hoje já são quase 4,500 óbitos causados pelo vírus só na cidade de Milão. O que só torna mais surreal a postagem do Deputado Federal Eduardo Bolsonaro (PSL) na sua conta de twitter defendendo para o Brasil a mesma campanha usada na Itália dia 28 de fevereiro, antes da epidemia começar a explodir no país.

Talvez influenciado por Donald Trump, que preocupado com o aumento vertiginoso do desemprego tem conclamado os estadunidenses a voltarem a trabalhar (a narrativa é que “a cura não pode ser pior que a doença”), o próprio Bolsonaro tem redobrado a aposta em minimizar a doença como apenas um “resfriadinho”. O discurso serviu para reorganizar a base do bolsonarismo, que tem partido para a ofensiva, pressionando os governadores, e até promovendo carreatas, para que a vida econômica retorne à normalidade.

Quarentena como um direito universal

Um padrão trágico se repete: onde a epidemia se instala, o lamento é “deveríamos ter agido antes”; onde a transmissão ainda não atingiu a fase exponencial explosiva o que se escuta é “não é tão grave, não precisamos fazer nada ainda”.

Nas experiências que podemos observar no mundo, há basicamente duas estratégias que funcionam para lidar com a pandemia. A China parou sua economia por semanas, e implementou o maior, e mais restritivo, experimento de quarentena em larga escala já testemunhado na história da humanidade. Funcionou. Hoje há menos casos ativos na China do que no Reino Unido de Boris Johnson e nos EUA de Donald Trump.

Alguns países do sudeste asiático, como Coréia do Sul, Singapura e Taiwan, implementaram medidas de distanciamento social, mas menos disruptivas e drásticas que as chinesas. Investiram em testagem massiva da população, checkpoints de medição de temperatura, rastreamento de dados que permitem mapear a cadeia de transmissão e assim aplicar quarentenas mais localizadas e inteligentes.

As duas estratégias têm seus custos e nenhuma é garantida. Mesmo os países asiáticos que foram bem sucedidos inicialmente na contenção estão experimentando agora uma segunda onda, e não se sabe ao certo o que acontecerá na China quando o confinamento em massa for relaxado (o que começou a ser feito essa semana).

Mas o que sabemos ao certo é que não é possível “levar no queixo”, como queria inicialmente Boris Johnson: a curva de contágio é muito vertical e a pressão sobre o sistema de saúde, brutal – o custo humano torna-se, rapidamente, terrível demais. No cenário em que nada é feito para conter a disseminação do vírus, as famílias perdem mais cedo seus entes queridos e, na maioria das vezes, nem sequer pode se despedir pessoalmente ou realizar um velório adequado.

Por isso precisamos reivindicar coletivamente o direito de quarentena para todos. Não há solução individual ou de mercado para esse problema de saúde pública – a única saída é coletiva e com solidariedade. O neoliberalismo disseminou o mito de que não existe sociedade, apenas indivíduos. A pandemia demonstra como esse mito é perigoso – para os próprios indivíduos. Como sociedade, não estaremos seguros até que uma ampla maioria dos nossos concidadãos tenham o direito a ficar em casa.

Isso exige, por um lado, um poder público capaz de coordenar uma resposta social de larga escala que coloque a maior parte das atividades produtivas em modo de espera, um congelamento racional e organizado da economia. Não haverá quarentena social efetiva se não for assegurada a cada trabalhador segurança material e econômica.

A renda mínima emergencial de R$ 600,00, aprovada ontem no Congresso por pressão da oposição, é um primeiro bom passo na direção certa. Outras medidas cruciais são a suspensão de todos os despejos, o congelamento dos aluguéis, a proibição dos cortes de água, luz e gás, e uma garantia governamental para os salários dos trabalhadores formais – além, obviamente, de financiamento irrestrito para reforçar o sistema público de saúde. As melhores armas que temos para combater a epidemia é uma política anti-austeridade, o distanciamento físico e a solidariedade social.

Cierre

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Published in América do Sul, Análise, Austeridade, Europa, Política and Saúde

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