Ao longo do recente renascimento das políticas socialistas, feministas socialistas têm trabalhado para garantir que suas ideias estejam no centro do movimento ascendente – enfatizando, por exemplo, a dimensão econômica do acesso ao aborto e o papel crucial dos sindicatos no combate a violência sexual. Mas, com frequência há o desconhecimento sobre a história de como as feministas se organizaram e quais foram suas lições para transformar explosões de energia radical em organizações duráveis. Como ativista e pensadora no coração do movimento de libertação feminina dos anos de 1960 e 1970, Jo Freeman – autora do clássico ensaio do início dos anos 1970 “A tirania das organizações sem estrutura”, que é republicado abaixo – representa uma importante voz para preencher esta lacuna.
Freeman era ativa nos movimentos anti-nuclear, pela liberdade de expressão e direitos civis antes de cofundar a União de Libertação das Mulheres de Chicago e outros grupos feministas. Nos inebriantes primeiros dias do movimento floresceram pequenos grupos radicais com fortes laços internos, cheios de veteranas do movimento que realizavam ações diretas criativas e estavam envolvidas em trabalhos ideológicos inovadores. Foi deste fermento que o termo “conscientização” emergiu. Cunhado por Kathie Sarachild, ele se referia a prática na qual mulheres falavam sobre certos aspectos da sua vida (digamos, ter se tornado uma dona de casa ao invés de uma cientista) e então discutiam tanto os contextos políticos que deram forma a estas experiências quanto as soluções políticas para a sua opressão.
No início dos anos 1970, quando Freeman escreveu o ensaio, milhares de grupos de conscientização haviam surgido em todo o país, muitos compostos por mulheres sem nenhuma experiência política anterior. Neste sentido, eles foram muito bem-sucedidos, transformando vidas e sendo a parte mais visível e acessível do movimento em muitos lugares.
Mas, como Freeman detalha no ensaio, muitos grupos de conscientização tiveram dificuldades para transformar visão em ação por causa da forma em que se organizavam. Enquanto pequenos grupos com fortes laços internos funcionavam bem para construir comunidades e um senso compartilhado de identidade, sem estruturas formais elas tinham dificuldade em formular e levar a cabo planos para ação. Hierarquias também se mostraram difíceis de superar. Ao invés de nivelar as coisas, o ideal de ausência de estrutura gerou hierarquias informais que não respondiam a ninguém e que eram difíceis de serem compreendidas por outros – especialmente se eles não podiam participar de reuniões intermináveis para entender o que realmente estava se passando.
No pior dos casos, a ausência de estruturas acabou produzindo não apenas líderes ocultos, mas também facilitando o abuso. Freeman descreve em seu ensaio de 1976 “Trashing” (existe uma tradução: https://passapalavra.info/2014/12/101362/) sobre as mulheres que foram afastadas de grupos e movimentos simplesmente por mostrarem independência ou um talento para organização. Realizado sob o pretexto de anti-elitismo, a prática da detonação e linchamento resultou em uma enorme perda de capacidades do movimento, para não falar nos devastadores efeitos pessoais.
Os efeitos trágicos da “ausência de estruturas” podem nos levar a buscar fórmulas simples para modelos organizacionais que são tanto efetivos quanto à prova de babacas. E claramente nós devemos abandonar qualquer aversão ingênua a organizações e estruturas. Democratizar o poder, e não se livrar dele, deve ser o nosso objetivo.
Mas “A tirania das organizações sem estrutura” também deixa claro que não há saídas fáceis: se estrutura é inevitável e necessária, o tipo de estruturas que uma organização escolhe depende da sua composição, da situação política e dos objetivos do movimento. Às vezes, há a necessidade legítima de se realizar uma tarefa rapidamente ao invés de se fomentar a participação que pode expandir a organização e aprofundar os laços das pessoas com ela. Como Freeman nos lembra no final do ensaio, o que se faz necessário é experimentar com o que sabemos que pode funcionar – e, acima de tudo, entrar nesta discussão de forma honesta e aberta.
– Por Laura Tanenbaum
Durante os anos em que o movimento feminista se formava, dava-se grande ênfase ao que se chamava de grupos sem liderança e sem estrutura como a principal – se não a única – forma organizacional do movimento. Essa ideia tinha origem numa reação natural contra a sociedade superestruturada na qual a maioria de nós se encontrava, no controle inevitável que isso dava a outros sobre nossas vidas e no elitismo persistente na esquerda e em grupos similares que supostamente combatiam essa superestruturação.
A ideia da “ausência de estrutura”, no entanto, passou de uma oposição saudável a essas tendências a um dogma. A ideia é tão pouco examinada quanto o termo é utilizado, mas tornou-se uma parte intrínseca e inquestionável da ideologia de libertação das mulheres. Para o desenvolvimento inicial do movimento, isso não importava muito. Ele definiu inicialmente seu objetivo e método principal como a conscientização e o grupo de discussão “sem estrutura” era um meio excelente para esse fim. Sua flexibilidade e informalidade encorajavam a participação na discussão e o ambiente frequentemente receptivo promovia a compreensão pessoal. Se nada de mais concreto do que a compreensão pessoal resultasse desses grupos, isso não importava muito, porque seu propósito, na verdade, não ia além disso.
Os problemas básicos não apareceram até que grupos de discussão individuais exauriram as potencialidades da conscientização e decidiram que queriam fazer algo mais específico. Neste ponto, eles normalmente falhavam porque a maioria dos grupos não estava disposta a mudar sua estrutura quando mudava sua tarefa. As mulheres tinham aceito completamente a ideia de “ausência de estrutura” sem perceber as limitações de seus usos. As pessoas tentavam usar o grupo “sem estrutura” e a reunião informal para fins aos quais não eram apropriados, acreditando cegamente que quaisquer outros meios seriam simplesmente opressivos.
Se o movimento quiser avançar além desses estágios elementares de desenvolvimento, ele deverá livrar-se de alguns de seus preconceitos sobre organização e estrutura. Não há nada de intrinsecamente ruim em nenhum dos dois. Eles podem e frequentemente são mal-usados, mas rejeitá-los de antemão porque são mal-usados é nos negar as ferramentas necessárias ao nosso desenvolvimento posterior. Precisamos entender porque a “ausência de estrutura” não funciona.
Estruturas formais e informais
Ao contrário do que gostaríamos de acreditar, não existe algo como um grupo “sem estrutura”. Qualquer grupo de pessoas, de qualquer natureza, reunindo-se por qualquer período de tempo, para qualquer propósito, inevitavelmente se estruturará de alguma forma. A estrutura pode ser flexível, pode variar com o tempo, pode distribuir de forma igual ou desigual entre os membros do grupo as tarefas, o poder e os recursos. Mas ela será formada a despeito das habilidades, personalidades e intenções das pessoas envolvidas. O simples fato de que somos indivíduos com aptidões, predisposições e experiências diferentes torna isso inevitável. Apenas se nos recusamos a nos relacionar ou interagir em qualquer base poderemos nos aproximar da “ausência de estrutura” – e essa não é a natureza de um grupo humano.
Isso significa que lutar por um grupo “sem estrutura” é tão útil e tão ilusório quanto almejar uma reportagem “objetiva”, uma ciência social “desprovida de valores” ou uma economia “livre”. Um grupo de “laissez-faire” é quase tão realista quanto uma sociedade de “laissez-faire”; a ideia se torna uma dissimulação para que os fortes ou os afortunados estabeleçam uma hegemonia inquestionável sobre os outros. Essa hegemonia pode facilmente ser estabelecida porque a ideia de “ausência de estrutura” não impede a formação de estruturas informais, apenas das formais. Da mesma forma, a filosofia do “laissez-faire” não impedia os economicamente poderosos de estabelecerem o controle sobre os salários, preços e a distribuição dos bens; ela apenas impedia o governo de fazê-lo. Assim, a “ausência de estrutura” torna-se uma forma de mascarar o poder e no movimento feminista é normalmente defendida com mais vigor pelas mais poderosas (estejam elas conscientes de seu poder ou não). Na medida em que a estrutura do grupo permanece informal, as regras sobre como as decisões são tomadas são conhecidas apenas por poucas e, a consciência do poder é limitada a àquelas que conhecem as regras. Quem não conhece as regras e não é escolhido para iniciação deve permanecer confusa ou sofrer de desilusões paranoicas de que algo que não sabe bem o que é está acontecendo.
Para que todas as pessoas tenham a oportunidade de se envolver num dado grupo e participar de suas atividades, é preciso que a estrutura seja explícita e não implícita. As regras de deliberação devem ser abertas e disponíveis a todos e isso só pode acontecer se elas forem formalizadas. Isto não significa que a formalização da estrutura de um grupo irá destruir a estrutura informal. Ela normalmente não destrói. Mas impede a estrutura informal de ter o controle predominante e torna disponível alguns meios para atacá-la se as pessoas envolvidas não estão ao menos comprometidas com as necessidades do grupo em geral. A “ausência de estrutura” é organizacionalmente impossível. Nós não podemos decidir se teremos um grupo estruturado ou sem estrutura, apenas se teremos ou não um grupo formalmente estruturado. Assim, a expressão “ausência de estrutura” não será mais usada, a não ser para referir-se à ideia que representa. O termo “sem estrutura” irá ser usado para referir-se àqueles grupos que não foram deliberadamente estruturados em uma forma particular. O termo “estruturado” irá referir-se àqueles que o foram. Um grupo estruturado tem sempre uma estrutura formal e pode também ter uma estrutura informal ou encoberta. É esta estrutura informal, particularmente em grupos sem estrutura, que fornece o fundamento para as elites.
A natureza das elites
“Elite” é, provavelmente, a palavra mais abusada no movimento de libertação das mulheres. É usada com frequência, e pelas mesmas razões que “vermelho” [“pinko”] era usado nos anos de 1950. E raramente é usada de forma correta. No movimento, ela normalmente se refere a indivíduos, ainda que suas atividades e características pessoais divirjam enormemente. Um indivíduo, enquanto indivíduo, nunca pode ser uma “elite” porque o termo “elite” só se aplica adequadamente a grupos. Nenhum indivíduo, independente de quão notório seja, pode ser uma elite.
De uma forma mais apropriada, uma elite refere-se a um pequeno grupo de pessoas que tem poder sobre um grupo maior do qual faz parte, normalmente sem responsabilidade direta perante ele e, frequentemente, sem seu conhecimento ou consentimento. Uma pessoa torna-se parte da elite por tomar parte ou defender o domínio deste pequeno grupo, seja esta pessoa bem conhecida ou totalmente desconhecida. Notoriedade não é uma definição de um membro da elite. As elites mais traiçoeiras são normalmente comandadas por pessoas totalmente desconhecidas do grande público. Membros inteligentes da elite são, em geral, espertos o suficiente para não se deixarem tornar muito conhecidos. Quando eles são conhecidos eles são vigiados e a máscara que esconde seu poder não fica mais presa tão firme.
As elites não são conspirações. Muito raramente um pequeno grupo de pessoas se reúne e tenta tomar o grupo maior para seus próprios fins. As elites são, nada mais, nada menos, do que um grupo de amigos que coincide em participar das mesmas atividades políticas. Eles provavelmente manteriam sua amizade, participassem ou não dessas atividades políticas; e participariam das atividades, mantivessem ou não sua amizade. É a coincidência destes dois fenômenos que cria elites em qualquer grupo e as torna tão difíceis de serem destruídas.
Esses grupos de amigos funcionam como redes de comunicação à parte de quaisquer canais regulares de comunicação que possam ter sido estabelecidos por um grupo. Se nenhum canal foi estabelecido, elas funcionam como as únicas redes de comunicação. Por serem amigas, normalmente compartilham os mesmos valores e posições, conversam socialmente entre si e se consultam quando as decisões comuns têm de ser tomadas, as pessoas que participam dessas redes têm mais poder no grupo do que aquelas que não participam. E são raros os grupos que não estabelecem redes de comunicação informal por meio das amizades que são feitas neles.
Alguns grupos, dependendo de seu tamanho, podem ter mais do que uma dessas redes informais de comunicação. As redes podem até sobrepor-se. Quando apenas uma rede dessas existe, ela é a elite de um grupo que seria de outra forma sem estrutura — queiram os seus participantes ser membros da elite ou não. Se ela é a única dessas redes num grupo estruturado, ela pode ser ou não uma elite, dependendo da sua composição e da natureza da estrutura formal. Se existem duas ou mais dessas redes de amigos, elas podem competir pelo poder dentro do grupo, formando assim facções, ou uma delas pode deliberadamente abandonar a competição deixando a outra como elite. Num grupo estruturado, duas ou mais dessas redes de amizades normalmente competem entre si pelo poder formal. Essa é, em geral, a situação mais saudável. Os outros membros estão na posição de arbitrar entre os dois competidores pelo poder e são assim capazes de colocar exigências do grupo àqueles a quem deram uma confiança temporária.
A natureza inevitavelmente elitista e excludente de redes informais de comunicação entre amigos não é nem um novo fenômeno característico do movimento de mulheres nem é um fenômeno novo para as mulheres. Tais relações informais têm impedido mulheres de participar em grupos integrados dos quais façam parte há séculos. Em qualquer profissão ou organização estas redes criaram a mentalidade do “corredor” e os laços da “velha guarda” que efetivamente tem impedido as mulheres enquanto grupo (assim como a alguns homens individualmente) de terem igual acesso as fontes de poder e satisfação social. Muita da energia dos movimentos de mulheres no passado foi direcionada para formalizar as estruturas de tomada de decisões e os processos de seleção, para que a exclusão das mulheres pudesse ser confrontada diretamente. Como nós bem sabemos, estes esforços não impediram que redes informais masculinas discriminassem as mulheres, mas o tornaram mais difícil.
O fato das elites serem informais não significa que sejam invisíveis. Num encontro de um grupo pequeno, qualquer um com um olhar aguçado e um ouvido atento sabe dizer quem está influenciando quem. Os membros de um grupo de amigos vão se relacionar mais com pessoas do seu grupo do que com outras. Eles ouvem mais atentamente e interrompem menos; eles repetem os argumentos dos outros membros e cedem amigavelmente. Eles tendem a ignorar ou a enfrentar os “de fora” cuja aprovação não é necessária para se tomar uma decisão. No entanto, é necessário para os “de fora” manter uma boa relação com os “de dentro”. É claro que as linhas não são tão bem definidas quanto as que eu tracei. Elas têm nuances de interação e não são roteiros pré-concebidos. Mas elas são discerníveis e têm o seu efeito. Quando se sabe quem é importante consultar antes de uma decisão ser tomada e a aprovação de quem é garantia de aceitação, então se sabe quem está mandando.
Uma vez que os grupos do movimento não decidiram concretamente quem deve exercer o poder dentro deles, diferentes critérios são usados pelo país. Muitos dos critérios estão dentro das linhas de características tradicionalmente femininas. Por exemplo, no início do movimento o casamento era normalmente um pré-requisito para participar da elite informal. As mulheres casadas foram tradicionalmente ensinadas a se relacionarem principalmente entre si e a olharem as mulheres solteiras como muito ameaçadoras para se ter como amigas íntimas. Em muitas cidades o critério foi ainda mais especifico, incluindo apenas aquelas mulheres casados com homens da Nova Esquerda [New Left]. No entanto, este padrão tinha mais do que a tradição por detrás, uma vez que homens da Nova Esquerda frequentemente tinham acesso aos recursos que o movimento precisava – como listas de endereço, gráficas, contatos e informação – e as mulheres estavam acostumadas a conseguirem o que queriam mais através dos homens do que de forma independente. À medida em que o movimento foi mudando com o passar do tempo, o casamento tornou-se um critério menos universal para a participação efetiva, embora todas as elites informais ainda estabeleçam padrões pelos quais apenas as mulheres que possuem certas características materiais ou pessoais possam participar.
Os padrões frequentemente incluem: origem de classe média (apesar de toda retórica sobre a relação com a classe operária); ser casada ou não ser casada, mas viver com alguém; ser ou fingir ser lésbica; ter entre 20 e 30 anos; ter formação universitária ou, pelo menos, alguma passagem pela universidade; ser “descolada”; não ser muito “descolada”; seguir uma certa linha política ou se identificar como “radical”; ter filhos ou pelo menos gostar de crianças; não ter filhos; possuir certos traços de personalidade “femininos”, como ser “gentil”; vestir-se adequadamente (seja no estilo tradicional, seja no anti-tradicional), etc. Existem também algumas características que quase sempre estigmatizariam a mulher como “divergente”, uma pessoa com a qual não se deve relacionar. Elas incluem: ser velha demais, trabalhar período integral (principalmente se está ativamente dedicada à “carreira professional”), não ser “gentil” e ser declaradamente solteira (ou seja, nem ativamente heterossexual, nem homossexual).
Outros critérios poderiam ser incluídos, mas eles têm todos temas comuns. O pré-requisito característico para participar das elites informais do movimento e, portanto, para exercer o poder, diz respeito à origem, à personalidade e à disponibilidade de tempo. Eles não incluem a competência, a dedicação ao feminismo, a posse de talentos ou a contribuição potencial ao movimento. Os primeiros, são critérios que normalmente se usa para escolher os amigos. Os últimos, são critérios que qualquer movimento ou organização tem de usar se pretende ser politicamente eficaz.
Os critérios de participação podem diferir de grupo para grupo, mas os meios para se tornar um membro da elite informal são basicamente os mesmos. A única diferença depende de se o membro está no grupo desde o início ou se entrou depois que ele já existia. Se está envolvido desde o começo, é importante que o maior número possível de amigos também esteja envolvido. Se ninguém se conhece muito bem, então alguém deve deliberadamente formar amizades com um número seleto de pessoas e estabelecer os padrões informais de interação cruciais para a criação de uma estrutura informal. Uma vez que os padrões informais estão formados, eles agem para a sua manutenção e uma das táticas mais eficazes para se manter é recrutar continuamente pessoas que “se encaixam”.
Uma pessoa entra para uma elite do mesmo jeito que se entra para uma organização. Se é vista como uma potencial adição para a estrutura informal, a pessoa é “capturada” por um membro e eventualmente iniciada ou deixada de lado. Se a sororidade não é politicamente consciente o suficiente para iniciar ativamente o processo, ele pode ser começado pelo membro de fora mais ou menos do mesmo jeito pelo qual se entra para um clube privado. Acha-se um mentor, isto é, um membro da elite que aparenta ser bem respeitado e cultiva-se ativamente uma amizade com ele. Eventualmente é provável que ela te leve para o grupo.
Tudo isto toma tempo. Portanto, é geralmente impossível para uma pessoa que trabalha o dia inteiro ou tem algum outro grande compromisso participar da elite simplesmente porque não há tempo livre o suficiente para ir a todas as reuniões e para cultivar as relações pessoais necessárias para se ter uma voz na tomada de decisões. É por isto que estruturas formais são benéficas para pessoas atoladas de trabalho, pois ao haver um processo estabelecido para a tomada de decisões se garante que todos possam participar em alguma medida.
Embora essa dissecação do processo de formação de elites em grupos pequenos tenha sido crítica em suas perspectivas, ela não foi feita com a crença de que essas estruturas informais são inevitavelmente ruins, apenas de que são inevitáveis. Todos os grupos criam estruturas informais como resultado dos padrões de interação entre seus membros. Essas estruturas informais podem fazer coisas bastante úteis. Mas apenas grupos sem estrutura são totalmente governados por elas. Quando elites informais estão juntas com o mito da “ausência de estrutura”, não há meios de pôr limites ao uso de poder. Ele se torna caprichoso.
Isto tem duas consequências potencialmente negativas para as quais deveríamos estar atentos. A primeira é que a estrutura informal de deliberação será como uma sororidade, na qual se escuta as pessoas porque se gosta delas e não porque dizem algo significativo. Enquanto o movimento não faz coisas significativas, isso não importa muito. Mas para que seu desenvolvimento não pare numa etapa preliminar, ele deve alterar essa tendência. A segunda consequência é que as estruturas informais não têm obrigação de serem responsáveis perante o grupo como um todo. Seu poder não lhes foi dado e não pode ser tirado. Sua influência não se baseia no que fazem pelo grupo; portanto elas não podem ser diretamente influenciadas pelo grupo. Isso não torna as estruturas informais necessariamente irresponsáveis. Aqueles que se interessam em manter sua influência normalmente tentarão ser responsáveis. O grupo apenas não pode obrigar a elite a ter essa responsabilidade, ela depende dos seus próprios interesses.
O sistema de “estrelas”
A “ideia” da “ausência de estrutura” criou o sistema de “estrelas”. Vivemos numa sociedade que espera que grupos políticos tomem decisões e escolham pessoas que articulem essas decisões para o público em geral. A imprensa e o público não sabem como escutar seriamente as mulheres enquanto mulheres; eles querem saber como o grupo se sente. Apenas três técnicas foram desenvolvidas para estabelecer a opinião de grandes grupos: o voto ou o referendo, o questionário de pesquisa de opinião pública e a seleção, num encontro apropriado, de porta-vozes do grupo. O movimento de libertação das mulheres não tem usado nenhuma dessas técnicas para se comunicar com o público. Nem o movimento como um todo, nem a maioria dos inúmeros grupos dentro dele estabeleceram meios de explicar suas posições sobre os vários assuntos. Mas o público está condicionado a procurar por porta-vozes.
Apesar de não ter escolhido conscientemente porta-vozes, o movimento lançou muitas mulheres que chamaram a atenção do público por diversas razões. Essas mulheres não representam um grupo particular ou uma opinião estabelecida; elas sabem disso e normalmente o dizem. Mas como não há porta-vozes oficiais nem qualquer corpo deliberativo que a imprensa possa entrevistar, quando ela quer saber a posição do movimento sobre um dado assunto, essas mulheres são tomadas como porta-vozes. Assim, queiram ou não, goste o movimento ou não, por omissão, as mulheres com distinção pública são colocadas no papel de porta-vozes.
Essa é uma das principiais origens da ira que normalmente se sente das mulheres consideradas “estrelas”. Já que elas não foram escolhidas pelas mulheres do movimento para representar as posições do movimento, outras mulheres se indignam quando a imprensa pressupõe que elas falam pelo movimento. Mas enquanto o movimento não selecionar as suas próprias porta-vozes, tais mulheres serão colocadas neste papel pela imprensa e pelo público, independente da sua vontade. Isto tem várias consequências negativas, tanto para o movimento quanto para as mulheres que são consideradas “estrelas”. Primeiro, como o movimento não as colocou na posição de porta-voz, o movimento não pode removê-las desta posição.
A imprensa as colocou nesta posição e somente a imprensa pode escolher não ouvi-las. A imprensa vai continuar a procurar as “estrelas” enquanto não houverem alternativas oficiais que possam falar pelo movimento. Enquanto acreditar que não precisa de nenhum representante, o movimento não vai ter controle sobre quem o representa perante o público. Segundo, mulheres que se encontram nesta posição se veem violentamente atacadas pelas suas irmãs. Isto não leva o movimento a lugar nenhum e é dolorosamente destrutivo para os indivíduos envolvidos. Tais ataques apenas levam a mulher a sair completamente do movimento – com frequência amargamente excluídas – ou a deixar de se sentir responsável perante suas “irmãs”. Ela pode manter alguma forma vaga de lealdade com o movimento, mas ela não é mais suscetível a pressões de outras mulheres.
Ninguém pode se sentir responsável perante pessoas que são a causa de tanta dor sem ser masoquista, e estas mulheres geralmente são muito fortes para se curvar diante deste tipo de pressão pessoal. Assim, a reação às “estrelas”, na verdade, encoraja precisamente o tipo de irresponsabilidade individual que o movimento condena. Ao expulsar uma irmã sob a pecha de “estrela”, o movimento perde qualquer controle que possa ter tido sobre a pessoa, que se torna livre para cometer todo tipo de pecado individualista de que foi acusada.
Impotência política
Grupos sem estrutura podem ser muito eficazes para fazer as mulheres falarem sobre suas vidas, mas eles não são muito bons para fazer as coisas acontecerem. A não ser que a natureza da operação mude, os grupos derrapam quando chega o momento em que as pessoas se cansam de “apenas conversar” e querem fazer algo mais. Ocasionalmente, a estrutura informal desenvolvida pelo grupo coincide com uma necessidade que o grupo pede preencher de uma forma tal que parece que o grupo sem estrutura “funciona”. Isto é, o grupo fortuitamente desenvolveu precisamente o tipo de estrutura melhor adaptada a cumprir determinado projeto. Ainda que trabalhar em um grupo deste tipo seja uma experiência inebriante, ele também é muito raro e difícil de replicar. Há quatro condições que são quase inevitavelmente encontradas nestes grupos:
1. Ele é orientado para uma tarefa. Sua função é muito estreita e específica, como organizar uma conferência ou publicar um jornal. É a tarefa que basicamente estrutura o grupo. A tarefa determina o que precisa ser feito e quando. Ela fornece um guia através do qual as pessoas podem julgar suas ações e fazer planos para atividades futuras.
2. Ele é relativamente pequeno e homogêneo. Homogeneidade é necessária para assegurar que os participantes tenham uma “linguagem comum” para interagirem. Pessoas de contextos muito diferentes podem fornecer diversidade a um grupo de conscientização, onde podem aprender com as experiências uns dos outros, mas uma diversidade tão grande entre os membros de um grupo voltado para uma tarefa apenas significa que eles vão se desentender frequentemente. Pessoas tão diversas interpretam palavras e ações de formas diferentes. Elas têm expectativas diferentes sobre o comportamento de cada um e julgam os resultados de acordo com critérios diferentes. Se todo mundo se conhece bem o suficiente para entender as nuances, estas podem ser acomodadas. Normalmente, elas apenas levam a confusão e a muitas horas gastas para resolver os conflitos que ninguém sequer pensava que pudessem surgir.
3. Há um alto nível de comunicação. Informação deve ser passada para todos, opiniões checadas, trabalho dividido e a participação garantida nas decisões relevantes. Isto só é possível se o grupo é pequeno e se as pessoas praticamente morarem juntas durante as fases mais críticas da tarefa. É desnecessário dizer que o número de interações necessário para envolver todo mundo aumenta geometricamente segundo o número de participantes. Isto inevitavelmente limita o grupo a cerca de cinco participantes, ou exclui alguns de parte das decisões. Grupos exitosos podem ter até dez ou quinze membros, mas apenas quando são na verdade formados por subgrupos menores que realizam partes especificas da tarefa, e cujos membros se sobrepõem de forma que o conhecimento sobre o que cada subgrupo está fazendo possa ser facilmente passado.
4. Há um baixo grau de especialização. Nem todo mundo tem que ser capaz de fazer tudo, mas tudo deve poder ser feito por mais de uma pessoa. Assim, ninguém é indispensável. Dentro de certos limites, as pessoas se tornam partes intercambiáveis.
Ainda que estas condições possam acontecer acidentalmente em pequenos grupos, isto não é possível em grupos maiores. Consequentemente, como o movimento, na maioria das cidades, é tão sem estrutura quanto os grupos de discussão individuais, ele não é muito mais eficaz em tarefas específicas do que os grupos separados. A estrutura informal raramente está suficientemente junta ou suficientemente em contato com as pessoas para ser capaz de operar eficazmente. Assim, o movimento gera muita agitação e poucos resultados. Infelizmente, as consequências de toda essa agitação não são tão inócuas quanto os resultados e a vítima é o próprio movimento.
Alguns grupos tornaram-se projetos de ação local que não envolvem muitas pessoas e trabalham em pequena escala. Mas essa forma restringe a atividade do movimento ao nível local, ela não pode ser levada ao nível regional ou nacional. Além disso, para funcionarem bem, os grupos precisam normalmente se reduzir àqueles grupos informais de amigas que tocavam as coisas inicialmente. Isto impede muitas mulheres de participarem. Enquanto a única forma de participação no movimento for a filiação a um pequeno grupo, aquelas mulheres que não aderem estão em evidente desvantagem. Enquanto os grupos de amizade forem o principal meio de atividade organizacional, as elites se tornam institucionalizadas.
Para aqueles grupos que não conseguem encontrar um projeto local ao qual se dedicar, o mero ato de estar junto torna-se a razão para estar junto. Quando um grupo não tem uma tarefa específica (e a conscientização é uma tarefa), as pessoas voltam suas energias para o controle de outras pessoas do grupo. Isto não é feito tanto por um desejo maligno de manipular os outros (embora às vezes o seja) quanto pela falta de alguma coisa melhor para fazer com seus talentos. Pessoas hábeis com tempo disponível e uma necessidade de justificar seus encontros se empenham no controle pessoal e gastam seu tempo criticando as personalidades dos outros membros do grupo. Disputas internas e jogos de poder pessoais tomam conta do dia. Quando um grupo está envolvido numa tarefa, as pessoas aprendem a conviver umas com as outras e a desprezar antipatias em benefício de objetivos maiores. Há limites colocados à compulsão de moldar cada pessoa segundo a nossa concepção do que elas deveriam ser.
O fim da conscientização deixa as pessoas sem direção e a falta de estrutura as deixa sem meios de chegar lá. As mulheres do movimento ou se voltam para si mesmas e suas irmãs ou buscam outras alternativas de ação. E há poucas alternativas disponíveis. Algumas mulheres simplesmente “fazem suas próprias coisas”. Isso pode levar a um grande grau de criatividade individual que pode, em grande parte, ser útil ao movimento, mas não é uma alternativa viável para a maioria das mulheres e certamente não promove um espírito de esforço cooperativo de grupo. Outras mulheres abandonam inteiramente o movimento porque não querem desenvolver um projeto pessoal e não encontraram meios de descobrir, associar-se ou começar projetos de grupo que as interessem.
Muitas se voltam para outras organizações políticas em busca do tipo de atividade estruturada e eficaz que elas não conseguiram encontrar no movimento das mulheres. Dessa forma, essas organizações políticas que vêm a libertação das mulheres como apenas uma questão entre outras consideram o movimento um vasto manancial para o recrutamento de novos membros. Essas organizações não precisam se “infiltrar” (embora isso não exclua que o façam). O desejo de uma atividade política significativa gerado pelas mulheres ao se tornarem parte do movimento de libertação é suficiente para torná-las ansiosas para entrarem em outras organizações, quando o próprio movimento não permite nenhum tipo de vazão para suas novas ideias e energias.
Aquelas mulheres que entram em outras organizações políticas e permanecem no movimento de libertação das mulheres ou que entram no movimento de liberação e permanecem em outras organizações políticas, tornam-se, por sua vez, pontos de apoio para novas estruturas informais. Essas redes de amizade se baseiam mais nas suas políticas não-feministas em comum do que nas características discutidas anteriormente; no entanto, a rede opera praticamente da mesma forma. Já que essas mulheres partilham valores, ideias e orientações políticas comuns, elas também se tornam elites irresponsáveis, não escolhidas, não planejadas e informais — pretendam sê-las ou não.
Essas novas elites informais são frequentemente sentidas como ameaças pelas velhas elites informais estruturadas anteriormente a partir de outros movimentos. Trata-se de uma percepção correta. Essas redes politicamente orientadas dificilmente estão dispostas a ser meras “sororidades”, como muitas das antigas eram, e querem divulgar suas ideias políticas e feministas. Isso é natural, mas as implicações disso para o movimento de libertação das mulheres nunca foram adequadamente discutidas. As velhas elites dificilmente estão dispostas a discutir abertamente essas diferenças de opinião porque isso implicaria em expor a natureza da estrutura informal do grupo. Muitas dessas elites informais têm se escondido sob a bandeira do “anti-elitismo” e da “ausência de estrutura”.
Para combater efetivamente a competição de outra estrutura informal, elas teriam que tornar-se “públicas” e essa possibilidade está cheia de implicações perigosas. Assim, para manter seu próprio poder, torna-se mais fácil racionalizar a exclusão dos membros da outra estrutura informal por meios como o “combate aos vermelhos”, o “combate às lésbicas” ou o “combate às heteros”. A única outra alternativa é estruturar o grupo formalmente de tal maneira que o poder original seja institucionalizado. Isso nem sempre é possível. Se as elites informais forem bem estruturadas e tiverem exercido uma boa quantidade de poder no passado, tal tarefa é viável. Esses grupos têm uma história de atividade política relativamente eficaz, na qual a firmeza da estrutura informal se mostrou um substituto adequado à estrutura formal. A sua estruturação não altera muito sua operação, embora a institucionalização da estrutura de poder abra espaço para a contestação formal.
Normalmente, os grupos que mais necessitam de estrutura são os menos capazes de criá-la. Suas estruturas informais não foram bem formadas e a adesão à ideologia da “ausência de estrutura” os faz relutantes em mudar de estratégia. Quanto mais sem estrutura um grupo é, tanto mais carece de estruturas formais; quanto mais adere a uma ideologia de “ausência de estrutura”, mais vulnerável está a ser tomado por um grupo de companheiras oriundas de organizações políticas.
Uma vez que o movimento como um todo é tão sem estrutura quanto a maioria dos grupos que o constitui, ele é igualmente suscetível à influência indireta de outras organizações. Mas o fenômeno manifesta-se diferentemente. Num nível local, a maior parte dos grupos consegue operar autonomamente, mas apenas os grupos que conseguem organizar uma atividade no nível nacional podem ser considerados grupos nacionalmente organizados. Assim, são as organizações feministas estruturadas que em geral fornecem as direções nacionais para as atividades feministas e essas direções são determinadas pelas prioridades dessas organizações.
Grupos como a “Organização Nacional das Mulheres” (NOW) e a “Liga de Ação pela Igualdade das Mulheres” (WEAL) e alguns grupos [caucuses] feministas de esquerda são as únicas organizações capazes de montar uma campanha nacional. Os inúmeros grupos de libertação das mulheres sem estrutura podem escolher se vão apoiar ou não as campanhas nacionais, mas são incapazes de organizar uma campanha própria. Dessa forma, seus membros se tornam as tropas sob a liderança das organizações estruturadas. Grupos declaradamente sem estrutura não possuem maneiras de acessar os vastos recursos do movimento para apoiar suas prioridades. Eles não têm sequer os meios de decidir quais devem ser as prioridades.
Quanto mais sem estrutura um movimento é, menos controle ele tem sobre as direções na qual se desenvolve e sobre as ações políticas na qual se engaja. Isso não significa que suas ideias não se espalham. Dado um certo grau de interesse dos meios de comunicação e condições sociais favoráveis, as ideias ainda serão difundidas amplamente. Mas o fato das ideias serem difundidas não implica que serão implementadas; significa apenas que serão discutidas. Na medida em que podem ser aplicadas individualmente, elas podem ser realizadas, mas na medida em que requerem poder político coordenado para ser implementadas, elas não o serão.
Enquanto o movimento de libertação das mulheres permanece dedicado a uma forma de organização que enfatiza os pequenos e inativos grupos de discussão entre amigas, os piores problemas da falta de estruturação não se farão sentir. Mas esse estilo de organização tem seus limites; é politicamente ineficiente, excludente e discriminatório quanto às mulheres que não estão ou não podem estar ligadas a redes de amigas. Aquelas que não se enquadram no esquema existente por motivo de classe, raça, profissão, casamento, maternidade ou personalidade serão inevitavelmente desencorajadas de tentar participar. Aquelas que se encaixam desenvolverão o interesse dissimulado de manter as coisas como estão.
Os interesses dissimulados dos grupos informais serão mantidos pelas estruturas informais que existem e o movimento não terá meios de determinar quem deve exercer o poder no seu interior. Se o movimento continua deliberadamente a não escolher quem deve exercer o poder, ele termina por não abolir o poder. Tudo que faz é abdicar o direito de exigir daquele que exerce o poder e a influência que tenha responsabilidade por esse poder e essa influência. Se o movimento continua a manter o poder tão difuso quanto possível porque sabe que não pode exigir responsabilidade daquele que o tem, ele impede qualquer grupo ou pessoa de dominá-lo totalmente. Mas, simultaneamente, ele se condena a ser tão ineficaz quanto possível. Um meio-termo entre a dominação e a ineficácia pode e deve ser encontrado.
Esses problemas estão surgindo agora porque a natureza do movimento está necessariamente mudando. A conscientização, como função principal do movimento de libertação das mulheres, está se tornando obsoleta. Devido à intensa publicidade da imprensa nos últimos dois anos e aos inúmeros livros e artigos que circulam agora nos meios estabelecidos, a libertação das mulheres se tornou uma expressão conhecida. Seus temas são debatidos e os grupos de discussão informais são formados por pessoas que não têm conexão explícita com nenhum grupo do movimento. O movimento deve seguir para outras tarefas. Ele agora precisa estabelecer suas prioridades, determinar suas finalidades e perseguir seus objetivos de maneira coordenada. Para fazê-lo ele deve organizar-se localmente, regionalmente e nacionalmente.
Princípios da Estruturação Democrática
A partir do momento em que o movimento não se prende mais tenazmente à ideologia da “ausência de estrutura” ele estará livre para desenvolver aquelas formas de organização que melhor se adequam ao seu funcionamento saudável. Isto não significa que devemos ir ao outro extremo e imitar cegamente as formas tradicionais de organização. Mas nós também não devemos rejeitar cegamente todas elas. Algumas das técnicas tradicionais vão se mostrar úteis, ainda que imperfeitas; outras nos darão ideias sobre o que devemos ou não fazer para obter certos fins com custos mínimos para as pessoas no movimento. Na maior parte dos casos, nós teremos que experimentar com formas diferentes de estruturação e desenvolver uma variedade de técnicas para usar em situações diferentes. O “sistema de sorteio” é uma dessas ideias que surgiram do movimento. Ele não é aplicável a todas situações, mas é útil em algumas. Outras ideias para a estruturação são necessárias. Mas antes que procedamos na experimentação inteligente, devemos aceitar a ideia de que não há nada de inerentemente ruim na estrutura em si mesma — apenas no seu uso excessivo.
Enquanto entramos nesse processo de tentativa e erro, existem alguns princípios que podemos ter em mente que são essenciais para a estruturação democrática e que são também politicamente eficazes:
1. Delegação, por meios democráticos, de autoridade específica a indivíduos específicos para tarefas específicas. Deixar pessoas assumirem trabalhos ou tarefas por omissão ou negligência significa apenas que eles não serão feitos de forma segura. Se as pessoas são escolhidas para uma tarefa, preferencialmente após manifestarem um interesse ou vontade de fazê-la, elas assumem um compromisso que não pode ser facilmente ignorado.
2. Exigência de que aqueles a quem a autoridade foi delegada sejam responsáveis frente aqueles que os escolheram. Essa é a forma pela qual o grupo tem controle sobre as pessoas em posições de autoridade. Indivíduos podem exercer o poder, mas é o grupo quem tem a última palavra sobre a forma como o poder é exercido.
3. Distribuição da autoridade entre tantas pessoas quanto possa ser razoavelmente possível. Isso impede o monopólio do poder e exige daqueles em posições de autoridade que consultem muitas outras pessoas no exercício de seu poder. Também oferece a muitas pessoas a oportunidade de ter responsabilidade por tarefas específicas e dessa forma aprender habilidades específicas.
4. Rotação de tarefas entre as pessoas. Responsabilidades que são mantidas durante muito tempo por uma mesma pessoa, formalmente ou informalmente, passam a ser vistas como sua “propriedade” e não são facilmente substituídas ou controladas pelo grupo. Inversamente, se a rotatividade das tarefas é muito frequente, as pessoas não têm tempo para aprender seu trabalho direito e adquirir o sentimento do trabalho bem feito.
5. Alocação de tarefas segundo critérios racionais. Escolher pessoas para uma posição porque elas são queridas pelo grupo ou lhes dar um trabalho pesado porque não são queridas, prejudica, a longo prazo, o grupo e a pessoa. Habilidade, interesse e responsabilidade têm de ser as principais preocupações nessa seleção. As pessoas devem ter a oportunidade de aprender habilidades que não possuem, mas isso é melhor implementado por uma espécie de programa de “aprendizes” do que pelo método do “nada ou afoga”. Ter uma responsabilidade maior do que se aguenta pode ser desmoralizante. Inversamente, ser rejeitado naquilo que se faz bem não encoraja ninguém a desenvolver suas habilidades. As mulheres têm sido punidas por serem competentes por toda história humana. O movimento não precisa repetir esse processo.
6. Difusão de informação a todos com a maior frequência possível. Informação é poder. O acesso à informação aumenta o poder. Quando uma rede informal dissemina novas ideias e informações entre si, sem passar pelo grupo, ela está envolvida num processo de formação de opinião sem a participação do grupo. Quanto mais se sabe como as coisas funcionam, mais politicamente eficaz se é.
7. Acesso igualitário aos recursos necessários ao grupo. Isto nem sempre é possível, mas deve se lutar para consegui-lo. Um membro que mantenha um monopólio sobre um recurso necessário (por exemplo, uma gráfica ou um laboratório de revelação do marido) pode influenciar indevidamente o uso daquele recurso. Habilidades e informação também são recursos. E as habilidades e informações dos membros só estarão igualmente distribuídos quando os membros quiserem ensinar o que sabem para os outros.
Quando esses princípios são aplicados, eles asseguram que quaisquer estruturas que sejam desenvolvidas serão controladas pelo grupo e assumirão responsabilidades frente a ele. O grupo de pessoas em posição de autoridade será difuso, flexível, aberto e temporário. Eles não estarão numa posição que facilita a institucionalização do seu poder, porque as decisões definitivas serão feitas pelo grupo como um todo. O grupo terá assim o poder de determinar quem deve exercer a autoridade dentro dele.
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