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Ex-presidente da Bolivia Evo Morales fala durante conferencia de imprensa no Museo de La Ciudad de Mexico em 13 de Novembro de 2019, na Cidade do México.

Dez dias após o golpe ainda não foram encontradas provas de fraude

No dia 10 de Novembro, o presidente boliviano Evo Morales foi destituído do cargo num golpe militar. A crescente onda de protestos pedindo pela saída de Morales abalou o pais por três semanas, na sequência de controversas eleições presidenciais.

As forças policiais das maiores cidades bolivianas declararam estado de sitio, levando ao caos generalizado. Finalmente, o alto comando do exercito insistiu para que Morales renunciasse. Ele assim o fez e então, sob ameaça de morte, escapou para o México, onde o governo de Andres Manuel Lopez Obrador lhe ofereceu asilo.

A Organização dos Estados Americanos (OEA), baseada em Washington e cujo lema diz “democracia pela paz, segurança e desenvolvimento”, não teve um pequeno papel no que foi o principio de uma série de eventos que rapidamente levaram à queda de Morales.

Mas primeiro, um pouco do contexto.

Em 2017, o Tribunal Constitucional Plurinacional, eleito pelo povo boliviano, determinou que limites para mandato eram inconstitucionais, pavimentando o caminho para que Morales concorresse a reeleição mesmo tendo perdido em referendo sobre o tema, por uma margem muito baixa, em 2016, de 1,6%. O secretário geral da OEA, Luis Almagro, declarou no início deste ano que “dizer que Evo Morales não pode participar é absolutamente discriminatório, considerando outros presidentes que participaram de processos eleitorais com base em uma decisão judicial”.

Como a OEA costuma atuar como observador eleitoral, os comentários de Almagro foram amplamente vistos como endossando a legalidade da proposta de reeleição de Morales. Isso foi, para desgosto dos parlamentares da oposição e outros que se opunham à abolição dos limites de mandato, o álibi para pressionar o governo Trump a se opor à candidatura de Morales à reeleição.

Foi com a validação de Almagro que o Movimento ao Socialismo (MAS), partido de Evo, chegou às eleições gerais de 20 de outubro e convidou a OEA – a qual teria modelado o sistema eleitoral Boliviano – para ser observadora. A eleição iria contar com dois métodos de contagem de votos: uma contagem rápida e uma outra oficial. A de contagem rápida, ou TREP (Transmissão de Resultados Eleitorais Preliminares), fornece resultados preliminares e não-legais na noite da eleição. A OEA recomendou ou ajudou a implementar estes sistemas em diversos países da America Latina, incluindo a Bolívia, que se utilizou da contagem rápida em diversas eleições anteriores.

Na noite da eleição, as autoridades eleitorais bolivianas chamaram uma coletiva de imprensa para divulgar os resultados preliminares da contagem rápida, a qual cobria 83,9% dos votos validos. Morales, eles anunciaram, estava na liderança com 45,7% e Carlos Mesa teria recebido 37,8%. Considerando que as leis bolivianas prevem que para vencer o líder deve ter pelo menos 40% dos votos e 10% à frente do segundo colocado, estes resultados sugeriram que a eleição iria para segundo turno, no qual muitos acreditavam que Mesa teria chances. À esta altura, as autoridades eleitorais pararam de reportar a contagem rápida – uma decisão que foi coerente com o que havia feito no passado e que haviam anunciado que fariam desta vez.

Mas o resultado final ainda não estava claro, a oposição e os representantes da OEA expressaram surpresa e exigiram que a contagem rápida fosse reiniciada. No dia seguinte, as autoridades eleitorais divulgaram os resultados com 95,7% dos votos apurados. Estes mostraram que Morales ganhava por pouco mais de 10%, com 46,9% contra 36,7% de Mesa. Quebrando o protocolo, a OEA então soltou um comunicado expressando “surpresa” e “preocupação” a respeito desta “drástica” e “inexplicável” mudança de tendência. “Para muitos observadores de fora, começando pelos líderes da oposição, esta declaração da OEA sugeria fraude no processo. E assim a narrativa da fraude estava estabelecida, criando caldo para os protestos de oposição na ruas de La Paz e de outras grandes cidades”.

Quando os resultados da contagem oficial vieram a tona poucos dias depois – os únicos resultados legais, os quais eram publicamente e frequentemente atualizados online – mostrando vitoria de Morales em primeiro turno, poucos estavam prestando atenção, ou pareciam sequer perceber que os resultados oficiais eram algo diferentes do resultado da contagem rápida.

Talvez ainda mais importante: seria a “mudança inexplicável de tendencias” nas contagens rápidas realmente inexplicável? Parece que não. Uma análise da reação da OEA feita pelo Centro de Pesquisas Econômicas e Politicas, think tank baseado em Washington e para o qual eu trabalho, mostra que os resultados informando os 95,7% eram consistentes com a tendencia de contagem em 83,9%. Assim como em eleições anteriores, áreas que majoritariamente favoreceram Morales foram simplesmente contadas depois daquelas favorecendo seus oponentes. Depois de contar por localização, não havia “mudanças de tendencias” significativas. Colocando em termos mais claros, a OEA tinha desconsiderado os resultados do processo de contagem rápida. Ainda pior, a OEA havia concretizado seu papel de ator politico na crise ao invés do papel de observador imparcial. A oposição, já nas ruas, estava empoderada.

Morales, ainda com pluralidade de apoio, indicou que gostaria de ter uma solução pacifica e rápida para a crise. Mesmo sabendo que as leis bolivianas eram as únicas autoridades para as eleições, ele concordou em ter auditoria da OEA sobre o resultado das eleições, talvez acreditando que isso iria confirmar sua vitória. Curiosamente, após apoiar inicialmente a auditoria, Mesa resolveu não concordar mais com os termos da OEA.

No dia 10 de Novembro, a OEA soltou um relatório preliminar de auditoria. Era focado basicamente em identificar vulnerabilidades técnicas e preocupações com o processo tanto para a contagem rápida quanto para a oficial. Era um relatório técnico de um consultor de segurança que as autoridades eleitorais haviam contratado. Contudo, o relatório falhou em provar que tais vulnerabilidades e falhas, ainda que serias, fossem exploradas para propósitos fraudulentos e que elas poderiam ter tido impacto significativo no resultado das eleições. (E com sistemas eleitorais ao redor do mundo encarando os mesmos desafios, fica difícil entender como tais preocupações seriam únicas ou justificassem o cancelamento das eleições). Os auditores da OEA também reforçaram a condenação de que havia uma mudança “inexplicável” na contagem rápida, o que resultou na base para muitos gritos de fraude logo após a eleição.

A auditoria da OEA concluiu que deveriam haver novas eleições, o que Morales, dado seu comprometimento, concordou em fazer. Mas já era tarde. Com os resultados da auditoria em mãos, os parlamentares do MAS e suas famílias foram ameaçados, e então os militares “sugeriram” que Morales renunciasse. Ele assim o fez e buscou asilo no México.

Não está claro o que vai acontecer agora. Os Estados Unidos e o Brasil (assim como muitos comentadores do mainstream) endossaram o golpe de extrema-direita e reconheceram a senadora da oposição de extrema direita, anti-indígena Jeanine Añez como presidente. Añez diz que Morales vai ser barrado nas próximas eleições e acusado de crimes se retornar ao país. E como presidente interina, ela já alterou radicalmente as politicas externas bolivianas. As ações certamente violam a constituição boliviana. Membros do MAS convocaram os magistrados também e agora muitos manifestantes anti-golpe estão nas ruas – de maneira nada comparável aos protestos anti-Morales da última semana, estes manifestantes estão sofrendo violenta repressão.

O que é certo é que em todos os elementos críticos desde a eleição, a OEA teve enorme participação na crise que levou Morales a renuncia. Almagro validou o golpe ao recusar-se a considerá-lo como tal e até mesmo sugeriu que a suposta fraude de Morales nas eleições do dia 20 de outubro – ainda não provada – é que foi o verdadeiro golpe.

A Bolívia é mais a regra do que a exceção neste assunto. A OEA tem uma historia sórdida no Haiti, onde pavimentou a via para o golpe de 2004 e reverteu os resultados nas eleições de 2010. Em anos recentes, Almagro foi expulso do Uruguai pela esquerda da Frente Amplio por reivindicar intervencionismo na America Latina – inclusive reconhecendo Guaidó como legitimo presidente da Venezuela, sancionando as eleições fraudadas que trouxeram Juan Orlando Hernandez para o poder em Honduras e nada fazendo quando Dilma Roussef foi deposta do governo brasileiro. Em anos recentes e no passado, o poder da OEA tem sido basicamente usado em uma direção: contra a esquerda.

E assim está sendo na Bolívia. O primeiro presidente indígena na história do pais, um socialista que notoriamente diminuiu a pobreza, foi destituído na sequência de uma eleição que a OEA denunciou como fraudulenta – mesmo sendo incapaz de provar a fraude.

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