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Trabalhadores dos Correios de Nova York embarcando em um ônibus para a Marcha em Washington por Empregos e Liberdade. Nova York, 1963. Tamiment Library e Robert F. Wagner Labor Archives / New York University

Para salvar a democracia precisamos da luta de classes

 A democracia, dizem, está em crise. O “Washington Post” veiculou um anúncio durante o Super Bowl nos alertando que “A Democracia Morre na Escuridão”. Os cientistas políticos Daniel Ziblatt e Steven Levitsky publicaram um livro intitulado “Como as democracias morrem”. E Larry Diamond, eminência parda da “educação para a democracia”, diagnosticou uma recessão democrática global.

Não é meu objetivo despejar água fria em preocupações deste tipo. Há muito a se lamentar na história recente. Contudo, um foco unilateral em eventos contemporâneos pode induzir ao erro. Ao estudar apenas o retrocesso de hoje, nos arriscamos a ignorar a floresta em busca de umas poucas árvores em forma de Trump.

Para entender a democracia – para defendê-la e aprofundá-la – devemos examinar sua longa história, em vez de ficar obcecados com pressões contrárias recentes. Em um artigo recente publicado no “American Journal of Sociology”, tento fazer exatamente isso. Minha pesquisa sugere que o progresso democrático nos últimos 150 anos é fruto do caráter modificador da luta de classes sobre o Estado. A democracia tem suas origens na capacidade dos pobres de romper as rotinas dos ricos.

Não é errado se preocupar, como muitos fazem, com as novas ideias, instituições e ideólogos. Mas a história nos ensina que a tarefa de salvar a democracia é, em grande parte, a tarefa de reviver as capacidades disruptivas das pessoas comuns.

A transição democrática

Não é preciso ser Pangloss (ou Steven Pinker) para notar que a ascensão da democracia transformou o mundo. No coração dessa ascensão repousa um paradoxo. A democracia, afinal de contas, introduz a igualdade nas sociedades divididas pelas hierarquias de classe e condição. Para nossos ancestrais, não teria havido nada mais estranho do que descobrir que reis e senhores em breve cederia poder a seus servos. No entanto, com firmeza, nosso mundo desigual se democratizou. Nossos melhores indicadores registram extraordinários progressos, em grande parte estáveis desde a Revolução Francesa.

Por que isso? O que mudou? Uma resposta é que a política mudou porque nossas ideias sobre a política mudaram. Steven Pinker argumenta algo assim em sua recente história do progresso humano. A democracia, sugere ele, surgiu assim que a Razão assumiu o controle dos assuntos humanos.

Um problema óbvio com esse argumento é que ele responde a uma questão apenas para levantar outra. Se a democracia emergiu porque nossas ideias sobre liberdade e igualdade mudaram, por que nossas ideias mudaram?

Durante muito tempo, a resposta mais comum ao enigma da democratização era que a democracia era o resultado do crescimento econômico. Houve sempre alguma discordância sobre o porquê – alguns argumentaram que o desenvolvimento econômico produziu uma classe média tolerante, outros acreditavam que uma economia complexa exigia uma política complexa – mas a visão geral era de que a modernização arrastou em seus trilhos a democracia.Trabalhos recentes têm desafiado essa visão. Embora os países mais ricos sejam, de fato, mais democráticos, não está claro se os países se democratizam à medida que se desenvolvem. A expansão econômica pode consolidar as elites tanto quanto pode derrubá-las. A perspectiva sobre a modernização tem dispensado um olhar muito breve para com os protagonistas e os vilões da transição democrática. Quem exige democracia de quem? E em que condições estão mais propensos a obter sucesso?

A luta de classes sobre o estado

Ao buscar responder a essas questões, economistas e cientistas políticos têm concebido a batalha pela democracia como uma luta entre os ricos e os pobres pelo Estado. Os ricos, que são uma minoria, temem a igualdade política. Os pobres, que são numerosos, a desejam.

Esses autores estão certos ao supor que a democratização é uma disputa entre classes em conflito pelo Estado. No entanto, eles amplamente compreenderam mal o caráter desta disputa. Especificamente, eles compreenderam mal as condições sob as quais os pobres conquistam a democracia dos ricos. A potência dos pobres não vem da riqueza crescente (como argumentam Ben Ansell e David Samuels) ou da ameaça de uma rebelião inesperada (como afirmam Damon Acemoglu e James Robinson ou Carles Boix). Com efeito, sua potência é o resultado de desenvolvimentos econômicos, que conferem aos pobres a capacidade de desafiar as rotinas das quais as elites dependem para a sua riqueza.

Para notar isso, precisamos apenas observar alguns fatos básicos sobre a economia e o Estado.

Primeiro, em qualquer sociedade desigual, o Estado mostrará deferência aos ricos em detrimento dos pobres – mesmo que o Estado não seja composto por representantes dos ricos. A razão é simples: o Estado depende de uma economia saudável para gerar as receitas necessárias para seus próprios objetivos. E como a saúde da economia é uma função da saúde dos investimentos, aqueles que detêm o controle da economia têm uma influência desproporcional sobre o Estado.

É claro que os pobres também podem obstruir a vida econômica. Mas, como seu único recurso é sua capacidade de trabalhar, eles não podem exercer o poder como indivíduos, ao contrário dos ricos. Para obstruir a vida econômica, eles devem se coordenar com outros. Como a ação coletiva é muito mais difícil do que a ação individual, os ricos sempre terão mais poder sobre o Estado do que os pobres.

Em segundo lugar, esse equilíbrio de capacidades disruptivas, embora sempre desigual, não é estável. A capacidade de qualquer pessoa pobre é uma função do trabalho que ela realiza. Algumas pessoas pobres têm maior influência sobre a vida econômica, seja porque trabalham em setores-chave ou porque têm habilidades relativamente escassas. Outros chegam mais facilmente à possibilidade de coordenar a ação coletiva porque trabalham em grandes locais de trabalho, e reunidos densamente.

De modo crítico, o desenvolvimento econômico cria novos papéis para que os pobres preencham (e, assim, diferentes formas de dependência dos ricos em relação aos pobres). Também modifica a distribuição dos pobres entre os papéis existentes. Ao fazê-lo, modifica o equilíbrio das capacidades disruptivas entre ricos e pobres. Às vezes, essas transformações reduzem o abismo de capacidades agregadas entre ricos e pobres. Quando isso acontece, os pobres adquirem influência sobre o Estado.

O que isso implica para o destino da democracia? Simplesmente que, onde quer que as pessoas comuns acumulem a capacidade de irromper a economia, devemos esperar ver o progresso em direção à democracia.

Em meu artigo, eu testei essa hipótese quantitativamente, utilizando a parcela da população em idade ativa empregada nos redutos históricos do movimento operário (manufatura, mineração, construção e transportes) como uma medida para o poder disruptivo das pessoas comuns. Eu levantei dados abrangendo dezenas de países durante grande parte do período moderno.

Minhas estimativas sugerem que a capacidade das pessoas comuns de irromper o funcionamento normal da economia é um indicador significativo e poderoso dos padrões de democratização ao longo do tempo. Mantidas iguais todas as demais condições, conforme a população trabalhadora em idade ativa de um país se aglomera nestas indústrias, na mesma medida aumenta a qualidade da democracia naquele país.

Separadamente, descobri que, como outros também demonstraram, um dos principais obstáculos à democratização é a existência de uma forte classe de latifundiários. Senhores fundiários são particularmente ameaçados pela democratização, porque eles frequentemente dependem de instituições antidemocráticas para manter a sua força de trabalho (como acordos de trabalho coercitivos) e porque seus ativos são fixos em um lugar. Historicamente, classes latifundiárias têm sido hostis até a arranjos democráticos formais.

Observar que a luta de classes pelo Estado impulsiona a democratização não é argumentar que nada mais importa. Encontrei algumas evidências de que a democracia é mais provável quando os vizinhos de um país também são democráticos, que países mais desiguais são mais propensos a se democratizar e que a educação incuba a democracia. Mas as explicações mais consistentes e poderosas para o surgimento da democracia são estas duas: o crescimento das capacidades disruptivas das pessoas comuns e a morte da classe dos senhores fundiários.

Defendendo melhor a democracia

No que diz respeito às grandes questões que preocupam hoje estudiosos e cidadãos, essa história tem algumas lições importantes e permanentes.

O mais importante é que nunca devemos esquecer que a democracia é a incrível tarefa de dobrar os poderosos ao interesse público. Como a desigualdade econômica oferece aos seus beneficiários as ferramentas para minar a igualdade política, sempre haverá algo inevitavelmente difícil na defesa da democracia em uma ordem desigual. Alguma parcela dos problemas atuais da democracia pode ser o resultado do surgimento de novas mídias ou de demagogos particularmente capazes. Mas, no seu âmago, nosso problema é um bastante antigo.

E assim, com o objetivo de defender e aprofundar a democracia, devemos nos ater à história de suas origens. A história da democracia é a história da luta entre ricos e pobres pelo Estado. Para defendê-la, devemos defender a capacidade dos pobres de desafiar os ricos.

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Published in Análise, Capital, Economia and Política

5 Comments

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