Quando Donald Trump anunciou planos para retirar os Estados Unidos do Acordo Climático de Paris, em junho de 2007, liberais espernearam que estamos condenados. O investidor e executivo da Tesla, Elon Musk, finalmente renunciou ao conselho econômico de Trump. O presidente da Goldman Sachs, Lloyd Blankfein, foi ao Twitter pela primeira vez para expressar sua decepção, enquanto a ex-embaixadora das Nações Unidas, Samantha Power, tuitou que esse seria “o fim do século americano”. Visando uma oportunidade, o presidente francês, Emmanuel Macron – competindo com Justin Trudeau pela liderança global “da resistência” – prometeu “tornar nosso planeta ótimo novamente”.
Do ponto de vista deles, a decisão parecia uma mudança radical na política climática empreendida pelo caprichoso e orgulhosamente ignorante Trump – o oposto da política serena e intelectual defendida por Barack Obama, que havia declarado que as mudanças climáticas são uma “verdadeira ameaça existencial” (em um jantar particular de arrecadação de fundos em Martha’s Vineyard). Porém, a decisão marcou uma consequência natural dos esforços de Obama para lidar com as mudanças climáticas sem tocar nos seus aspectos políticos.
Como um bom tecnocrata, Obama buscou uma solução através de ordens executivas, medidas administrativas e negociações internacionais de elite. Seu “Plano de Energia Limpa” se baseou no poder da presidência para reduzir as emissões ao aumentar a regulação das usinas de energia e para elevar os padrões de combustível usando a “Lei do Ar Limpo”e a Agência de Proteção Ambiental. No seu último ano no cargo, chamou muita atenção ao negociar um acordo internacional na COP 21 em Paris – o primeiro acordo climático global desde Kyoto em 1997.
Porém, sua conquista foi superestimada, assim como o pânico liberal com o fim dela. O acordo ficou muito aquém do que os cientistas e os ativistas do clima concordam ser necessário para evitar um aquecimento perigoso de 2ºC ou mais – até porque o próprio Obama havia pressionado para que o cumprimento do acordo não fosse obrigatório. Mesmo apenas implementar o conjunto de compromissos assumidos em Paris exigiria uma ação política sustentada, independentemente de quem estivesse controlando o Salão Oval.
Paradoxalmente, Obama também foi mais responsabilizado por tentativas de regulação do que provavelmente merecia. Regulações de emissões mais rigorosas são apenas uma das razões pelas quais a demanda por carvão vem diminuindo: ativistas têm feito campanha pelo fechamento de usinas à carvão e os preços da energia solar e do gás natural têm despencado. Mas Obama forneceu um bode expiatório conveniente para o contínuo declínio do carvão no país – no fim das contas, ele fez pouco para aliviar a crise do desemprego e de carência nos locais que antes dependiam desse recurso. O caminho estava livre para alguém como Donald Trump concorrer baseado numa plataforma sobre trazer de volta os empregos de mineração – mesmo que na realidade ele não tivesse nenhuma maneira de fazê-lo.
O desejo de nos mover mais rapidamente do que permite o estado atual do Congresso estadunidense ou brasileiro é compreensível – estamos ficando sem tempo, rapidamente. Mas as mudanças climáticas são um problema grande demais para resolvermos com “ajustes e empurrõezinhos”. A ação séria sobre o clima não pode evitar a Política – precisa enfrentá-la de frente.
Trump não é o primeiro a explorar tensões entre trabalhadores e ambientalistas, e é improvável que seja o último. Em resposta, a Esquerda precisa oferecer um programa que revele essas tensões como uma falsa escolha – uma escolha oferecida nos termos do Capital. Nós podemos fazer isso oferecendo um plano climático que melhore a vida das pessoas de maneiras que elas possam entender e pelas quais elas estariam dispostas a lutar. No entanto, isso não significa apenas se concentrar nos trabalhadores nos vestígios mais tradicionais da economia de combustíveis fósseis, ou mesmo nos tipos de empregos de energia verde e infra-estrutura normalmente oferecidos em substituição a eles. Em vez disso, significa organizar a classe trabalhadora tal como existe hoje – enfermeiras e professores, profissionais de cuidados e trabalhadores do setor de serviços que já estão fazendo o trabalho que será fundamental para uma sociedade de baixa emissão de carbono voltada para o florescimento de todos, e que podem liderar o caminho para um futuro cuja glória pode durar muito mais do que trinta anos.
Como seria essa sociedade? Em geral, ela significará menos trabalho por todo canto; porém, o tipo de trabalho de que mais precisaremos em um futuro climaticamente estável é um trabalho orientado para sustentar e melhorar a vida humana, bem como as vidas de outras espécies com as quais compartilhamos nosso mundo. Isso significa ensino, jardinagem, culinária e enfermagem: trabalhos que melhoram as vidas das pessoas sem consumir grandes quantidades de recursos, sem gerar emissões significativas de carbono ou produzir enormes quantidades de coisas.
Como se verifica, também são trabalhos que um número crescente de pessoas vêm fazendo. “Fui eleito para representar os cidadãos de Pittsburgh, e não de Paris”, disse Trump em seu famoso discurso anunciando o abandono do acordo. Foi um sinal claro para seus apoiadores no “Cinturão de Ferrugem”, o antigo centro industrial hoje deteriorado pela contínua exportação de empregos à partir do neoliberalismo de Reagan – o único problema é que Pittsburgh não é uma cidade siderúrgica há décadas. A maioria dos empregos hoje não está no carvão, no aço ou na fabricação, mas no que muitas vezes é conhecido como “eds e meds“: cuidados de saúde e educação.
Pittsburgh ilustra uma tendência mais ampla: embora a visão tradicional da classe trabalhadora mantenha um apelo surpreendentemente firme sobre a imaginação política, os setores da economia de crescimento mais rápido estão em indústrias caracterizadas pelo trabalho de “colarinho rosa” – enfermagem, ensino, e setor de serviços. Os promotores de empregos verdes muitas vezes observam que há mais empregos na instalação de painéis solares do que na mineração de carvão nos dias atuais – mas também há mais professores, auxiliares de saúde em casa e prestadores de cuidados infantis. Esses trabalhos são feitos de forma desproporcional por mulheres, imigrantes e pessoas não-brancas.
Organizar esses trabalhadores seria o caminho a seguir para os socialistas sob quaisquer circunstâncias; sob as circunstâncias terríveis que enfrentamos, insistir que o trabalho que eles fazem é crucial não só para uma sociedade justa e decente, mas para uma sociedade ecologicamente viável é o caminho para reconquistar nosso futuro. Os movimentos trabalhistas nos séculos XIX e XX insistiam em que os trabalhadores construíram o mundo, no sentido mais literal. O movimento trabalhista do século XXI precisa colocar em primeiro plano os trabalhadores que nos permitirão viver nele.
Para colocar de maneira clara: os empregos de colarinho-rosa são empregos verdes.
Claro, embora existam sincronismos entre imperativos ecológicos e trabalho feminizado, eles não estão necessariamente alinhados. O trabalho de cuidados pode ser de baixa emissão de carbono – mas isso não significa que as indústrias que dependem disso o sejam. Os funcionários de hotéis, por exemplo, são altamente sindicalizados, mas a indústria hoteleira, dependente como é de passageiros frequentes em via aérea, sofreria sem os combustíveis fósseis.
Las Vegas, por exemplo, está liderando o caminho na organização dos trabalhadores de serviços, mas dificilmente seria um modelo para um mundo ecologicamente sustentável. Organizar profissionais de fast-food e de varejo também seria decisivo, mas o McDonald’s e a Forever 21 não são muito mais ecologicamente defensáveis que a ExxonMobil. Às vezes, isso significará transformações na forma como o trabalho é organizado; muitas vezes isso significará simplesmente fazer menos dele. Esse deve ser o caso mesmo para empregos que não são tão intensivos em recursos: o trabalho de cuidados pode ser gratificante – mas também pode ser tedioso, chato, emocionalmente desgastante e fisicamente tenso.
Enquanto isso, a transição para uma economia centrada na reprodução social exigirá uma avaliação real sobre as formas como o trabalho de servir aos outros tem sido moldado pelo gênero e pela raça. Pode haver empregos para arrumar camas e dar banho em idosos, mas isso não significa que os trabalhadores – principalmente masculinos – que passaram décadas trabalhando em fábricas, em plataformas de petróleo ou em minas de carvão poderão – ou desejarão – fazê-los. Mas eles poderiam ser mais propensos a fazer isso se o trabalho de reprodução social fosse mais bem pago e reconhecido.
Na greve dos trabalhadores de saneamento de Memphis de 1968, os trabalhadores de saneamento (cruciais para qualquer sociedade ecossocialista!) declaravam “Eu Sou um Homem”, exigindo melhores salários e melhores condições de trabalho. Ao fazê-lo, eles desafiavm um sistema de trabalho segregado que os deixava para fazer o trabalho mais sujo, insistindo tanto na igualdade social quanto em ganhos materiais. Reorganizar a reprodução social de forma mais ampla exigiria um desafio semelhante ao status do trabalho tradicionalmente feito pelas mulheres e especialmente pelas mulheres não-brancas.
Ou seja, enfrentar as mudanças climáticas exigirá a construção, mas também a transformação dos movimentos da classe trabalhadora. O movimento autonomista da década de 1970 na Itália fornece uma perspectiva útil: com o aumento do custo de vida em espiral acima do ritmo dos aumentos salariais, as comunidades da classe trabalhadora reconheceram que a luta tinha que continuar fora da fábrica. Eles lutaram para reduzir o custo não só de bens necessários como aluguel, transporte e mantimentos, mas mesmo de luxos como a ópera; eles ocuparam edifícios em desuso e os transformaram em centros comunitários, imaginando bibliotecas, clínicas, academias e teatros em locais onde essas comodidades não existiam. Eles insistiam que as pessoas da classe trabalhadora também tinham direito a uma boa qualidade de vida.
No entanto, projetos autonomistas, embora geralmente organizados em conjunto com alas radicais dos sindicatos, tendiam a ser esporádicos e de implementação fragmentada. Na década de 1980, eles haviam se desintegrado, em sua maioria.
Hoje, os salários estagnados e o aumento do custo de vida também tornam os bens de necessidade e os de luxo inacessíveis para a maioria. A luta de classes na era das mudanças climáticas não está apenas nos bairros pobres após o furacão Katrina ou em Rockaways após o furacão Sandy – está nos ritmos da vida cotidiana. Está em lares de cuidados e nas escolas, no ônibus e na rua. O desafio contemporâneo, portanto, é enfrentar lutas autonomistas sobre a reprodução social – mas levá-las em frente em um nível mais institucional, além de estendê-las para além da fábrica e do social para um novo nível: o ecológico.
Esse processo já está em andamento. Como Nancy Fraser argumenta, “se você unir as lutas por uma semana de trabalho mais curta, por uma renda básica incondicional, por creches públicas, pelos direitos dos trabalhadores domésticos imigrantes e dos trabalhadores que realizam o trabalho de cuidados em lares de idosos, hospitais, creches e escolas com fins lucrativos – e então unir com lutas sobre água limpa, habitação e degradação ambiental, especialmente no Sul global – o que isso tudo significa … é uma demanda por uma nova maneira de organizar a reprodução social”.
Organizar a reprodução de uma maneira nova significa tornar o trabalho da nossa sobrevivência diária menos oneroso e mais prazeroso. Significa criar e manter espaços de luxo comum e de lazer coletivo – parques e jardins públicos exuberantes, belos espaços para recreação e relaxamento, arte e cultura acessíveis a todos. Significa não só construir moradias em densos centros urbanos, mas garantir que as pessoas da classe trabalhadora possam realmente se dar ao luxo de viver lá; significa dar apoio a mais trânsito público não só nas cidades, mas também nos extensos subúrbios onde vive um número cada vez maior de pessoas da classe trabalhadora e nas comunidades rurais onde o isolamento exacerba crises sociais e econômicas. Significa lidar com a escassez de mão-de-obra no núcleo da crise dos cuidados no meio rural. Significa programas como sistemas de saúde universais e universidades gratuitas, que simultaneamente expandem o acesso a bens públicos e o escopo da economia de baixo carbono.
O New Deal tinha elementos de um tal futuro no Corpo de Conservação Civil (ccc), que colocava jovens para trabalhar criando e mantendo parques nacionais, e os Projetos Federais de Arte, Música, Teatro e Escritores, que forneciam subsídios para dar suporte a uma grande variedade de artistas. Esses tipos de programas, combinados com os programas de bem-estar social da Grande Sociedade, incentivariam uma sociedade que garanta tanto as necessidades de provisão social quanto uma abundância de delícias naturais e culturais.
Uma versão renovada e permanente do CCC poderia estender a economia do cuidado ao nosso planeta: Nas áreas rurais, poderia criar novas trilhas para caminhadas, acampamentos e reservas naturais; nas cidades, poderia dar apoio à criação e manutenção de parques urbanos e jardins comunitários que poderiam ajudar a tornar os densos espaços urbanos suportáveis e respiráveis, mesmo conforme a temperatura aumentar. Em todo o país, poderia restaurar áreas que há muito foram prejudicadas pela extração de combustíveis fósseis e outras atividades industriais. O ccc original empregava milhares de nativos, muitas vezes empreendendo projetos determinados por conselhos tribais; uma versão revivida poderia ser emparelhada com um programa de soberania e controle nativo sobre terras indígenas. Em uma nota mais sombria, à medida que as mudanças climáticas progridem, precisaremos de mais pessoas treinadas para lidar com incêndios florestais, inundações e outros tipos de eventos climáticos extremos.
A experiência dos últimos anos mostra que a esquerda pode crescer e vencer baseada em plataformas robustas e ambiciosas que abordem questões que vão desde o acesso à moradia e educação até benefícios médicos e cuidados com idosos. Integrados mais de perto com uma análise ecológica, estas representam os blocos de construção de uma plataforma ecossocialista.
Uma visão inicial de como esse tipo de programa poderia parecer está representada no Manifesto Salto do Canadá, um documento produzido por um conjunto de grupos trabalhistas, ambientalistas e indígenas. O Manifesto defende, em termos simples, uma economia centrada em “cuidar uns dos outros e do planeta”. Isso significaria trabalhar menos tempo por salários maiores e gastar o tempo que economizamos com nossos entes queridos e comunidades; orientar o trabalho que fazemos para acabar com a desigualdade racial e de gênero; gerar energia sem destruir os ecossistemas; e criar estruturas de propriedade que retornem a riqueza para as pessoas e comunidades, em vez de extraí-las delas. O Manifesto coloca o trabalho de reprodução social e ecológica no coração de sua visão do futuro; sua vanguarda são aqueles cujo trabalho tem sido feminizado e menosprezado. É um programa que é politicamente versado no terreno da Política existente, envolvendo organizações existentes, ao mesmo tempo em que imagina um futuro que rompe bruscamente com o presente.
Devemos seguir esse exemplo e trabalhar para visualizar o futuro que desejamos e as forças que podem nos levar até lá – e depois nos organizar. Podemos manter o planeta habitável construindo um mundo suportável, mas não temos tempo para desperdiçar.
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